A LEI MARIA DA PENHA PARTE 3

REFERÊNCIA: CARTILHA DO SENADO FEDERAL, "DIALOGANDO SOBRE A LEI MARIA DA PENHA" A construção do conceito de violência contra a mulher Como vimos anteriormente, a previsão de lei específica que trata da violência contra as mulheres, em especial nas relações domésticas e familiares, é algo recente em nosso ordenamento jurídico e só ocorreu com a Lei Maria da Penha, em 2006. vamos estudar como surgiu o conceito de violência contra a mulher e suas derivações ao longo do tempo, a partir da reflexão dos movimentos de mulheres acerca dos "castigos", maus-tratos e os assassinatos de mulheres pelos seus parceiros, os quais passaram a ser nomeados de “violência contra a mulher”. No final da década de 1970, em um contexto político de reivindicações pelo fim da ditadura e redemocratização do país, os movimentos de mulheres e feministas definiram pautas específicas para as mulheres, como o direito a creches e trabalho doméstico. Posteriormente, as feministas incorporam temas mais controversos como sexualidade, anticoncepção e violência doméstica (COSTA, 2005). De acordo com Miriam Grossi (1994), o conceito de violência contra a mulher resulta de uma construção histórica do movimento feminista. No final da década de 1970, o movimento de mulheres se indignava contra a justificativa da legítima defesa da honra utilizada nos julgamentos de homens que matavam as mulheres, cujo resultado era a absolvição ou aplicação de pena mínima. As primeiras manifestações do movimento de mulheres se deram sob o slogan “Quem ama não mata”, no ano de 1979, por ocasião do julgamento de Doca Street, que matou sua companheira Ângela Diniz. Assim, nesse primeiro momento, a violência contra a mulher significava homicídios de mulheres cometidos por seus maridos, companheiros ou amantes. A indignação levou à mobilização do próprio movimento para criação dos serviços de atendimento, pois se acreditava “que o assassinato era o último ato de uma escalada de violência conjugal que começava com o espancamento” (GROSSI, 1994, p. 474). Posteriormente, face à imensa procura e a pluralidade de demandas das mulheres, buscou-se, por meio de pressão política, a criação das delegacias especiais de atendimento à mulher. A produção teórica e militante nesses espaços (delegacias especiais e canais de atendimentos geridos pelos movimentos de mulheres) levou à compreensão de que a violência contra a mulher era apenas a violência conjugal e/ou doméstica, pois era grande o número de mulheres nessas relações que buscavam esses serviços para relatar casos de lesões corporais, ameaça, estupro, maus-tratos, sedução, abandono, sequestro em cárcere privado e tentativa de homicídio. Pesquisas qualitativas trouxeram à tona outras formas de violência (GROSSI, 1994, p. 475): a) o silêncio e a falta de comunicação entre os companheiros; b) a destruição de objetos como móveis, eletrodomésticos e roupas; c) sentimento de humilhação, doença dos nervos pela tensão conjugal; e d) a violência física na gravidez. A partir da década de 1990, outras formas de violências contra a mulher foram sendo descortinadas, à medida que eram problematizadas e visibilizadas, tais como o assédio sexual, a violência em razão de práticas discriminatórias no acesso ao trabalho, o abuso sexual infantil no espaço doméstico e familiar, a violência contra as mulheres negras e contra as mulheres indígenas (GROSSI, 1994). Mas como algo que acontece pode ser invisível? Quando se torna visível? A invisibilidade refere-se à “falta de reconhecimento de certos acontecimentos como sendo da sociedade como um todo e, por isso, devem ser alvo de propostas de resolução de caráter público para todos, e não de cunho estritamente individual” (SCHRAIBER et al, 2005, p. 35). A violência contra a mulher, portanto, torna-se visível quando deixa de ser interpretada como um problema individual da mulher e passa a ser reconhecida como problema social e a constar das agendas públicas de assistência, prevenção e punição para esses casos. Mencionamos anteriormente que os serviços de atendimento instituídos pelos movimentos de mulheres e as delegacias de atendimento à mulher, criados nos Estados, contribuíram para a visibilidade da violência. Vale acrescentar o papel relevante da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres nessa tarefa, mediante expansão dos serviços de atendimento, criação do Plano Nacional de Políticas de Enfrentamento da Violência contra a Mulher e o trabalho em parceria com os Estados e Municípios, a institucionalização do sistema de atendimento em rede, que visa dar conta das várias facetas da violência contra a mulher, entre outras medidas. Ganha destaque a Lei Maria da Penha que não deixa dúvidas quanto à responsabilidade do Estado não só em punir, mas também atuar na prevenção, assistência das mulheres em situação de violência e reeducação dos autores de violência. Favoreceram a visibilidade da violência contra a mulher: Serviços de Atendimento à Mulher Lei Maria da Penha Delegacias de Atendimento à Mulher Plano Nacional de Políticas de Enfrentamento da Violência contra a Mulher Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres No entanto, a grande dificuldade para retirar da invisibilidade a violência contra as mulheres passa também pelo reconhecimento dos maus-tratos como violência pelas mulheres e também pelos agentes do Estado, que trabalham nos diversos serviços de atendimento. Uma No entanto, a grande dificuldade para retirar da invisibilidade a violência contra as mulheres passa também pelo reconhecimento dos maus-tratos como violência pelas mulheres e também pelos agentes do Estado, que trabalham nos diversos serviços de atendimento. Uma dessas dificuldades tem sido reconhecer que a violência não é apenas aquela cometida por estranhos, mas, também, por pessoas que pertencem ao círculo familiar e afetivo das mulheres (SCHRAIBER, 2005). Santos e Izumino (2005), em revisão da literatura brasileira no campo das ciências sociais e na área de violência contra a mulher, identificaram, nos primeiros estudos realizados na década de 1980, três correntes teóricas explicativas desse fenômeno: 1) dominação masculina (CHAUÍ, 1985); 2) dominação patriarcal (SAFFIOTI, 1987); e 3) relacional (GREGORI, 1993). Nos anos de 1990, a partir da inclusão da categoria de análise “Gênero”, os estudos deram ênfase à questão da cidadania das mulheres em relação ao acesso à Justiça. Saffioti (1999, p. 83), tendo por base a compreensão da violência contra a mulher como expressão do patriarcado e incorporando também às suas reflexões o conceito de “gênero”, contribuiu de forma decisiva para a definição das diversas formas de violência contra a mulher, conforme consta abaixo: Violência familiar - aquela que envolve membros de uma mesma família extensa ou nuclear, levando-se em conta a consanguinidade e a afinidade. Compreendida na violência de gênero, a violência familiar pode ocorrer no interior do domicílio ou fora dele, embora seja mais frequente o primeiro caso. A violência intrafamiliar - extrapola os limites do domicílio. A violência doméstica apresenta pontos de sobreposição com a familiar, podendo também atingir pessoas que, não pertencendo à família, vivem, parcial ou integralmente, no domicílio do agressor, como é o caso de agregados e empregadas (os) domésticas (os). Violência de gênero é o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos. No exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio. (...) Gênero diz respeito à construção social do feminino e masculino (SAFFIOTI, 1999), mas também significa relações de poder e nos estudos mais recentes significa a identidade. Gênero, como construção social do feminino e masculino, significa que “a identidade social da mulher, assim como a do homem, é construída através da atribuição de distintos papéis, que a sociedade espera ver cumpridos pelas diferentes categorias de sexo” (SAFFIOTI, 1987, 10). Conforme a autora, é exatamente essa dimensão sociocultural que possibilita compreender a famosa frase de Simone de Beauvoir “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Vimos que, no contexto histórico e sociocultural do Brasil Colônia, as mulheres eram tuteladas devido à suposta “fraqueza de entendimento”, o que significou muitos interditos às mulheres, destinadas quase que exclusivamente ao âmbito privado, da casa, e à tarefa da maternidade. Em contraposição, aos homens eram atribuídas as qualidades de forte, racional e superior, as quais lhes garantiam o direito à educação formal, a ocupar os postos de trabalho e tomar decisões nos mais diversos espaços de poder, na esfera pública ou privada, na condução da família, exigindo obediência dos filhos e da mulher, em tudo que fosse justo e honesto, cuja definição cabia ao homem, detentor do pátrio poder. Segundo Saffioti (1999, p. 83) “a desigualdade longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais”. Assim, as desigualdades de gênero podem ser alteradas para relações mais igualitárias. De fato, pela dimensão histórica, percebe-se com mais nitidez as transformações sociais, as quais, no campo dos direitos das mulheres, foram impulsionadas pelos movimentos de mulheres e feministas, repercutindo mudanças em todas as dimensões sociais, no campo legislativo e também nas expectativas sociais quanto aos papéis a serem desempenhados por homens e mulheres. A Constituição Federal de 1988 reflete essas mudanças, proclamando a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres de forma geral que se estende para as relações familiares, sem descuidar de que a igualdade real é um processo em construção e, assim, cria mecanismos para coibir a violência na família. O impacto da violência é diferenciado para homens e mulheres. As mulheres estão mais sujeitas a ela no espaço doméstico e familiar, ao passo que os homens estão mais sujeitos à violência no espaço público. Os principais autores da violência contra a mulher são os companheiros ou ex-companheiros, conforme mostram os dados do Retrato das Desigualdades (2014, p. 38). Especificamente em relação ao local em que ocorre a agressão física, é possível perceber que 80% dos homens que sofreram este tipo de violência a sofreram em um local público, enquanto apenas 12,2% foram agredidos em suas próprias residências. Em sentido oposto, 43,1% das mulheres vítimas de agressão física estavam em suas residências, ao passo que 49% estavam em lugares públicos. Estes dados apontam para uma possível quebra da sensação de segurança no espaço doméstico (ou da segurança propriamente dita), agravada quando se verifica quem são os autores desta agressão. Entre os homens, 46,4% dos autores eram pessoas desconhecidas, mas somente 2% eram cônjuges ou ex-cônjuges, e 5,7% eram parentes. Para 26% das mulheres, a violência era perpetrada por seus próprios companheiros ou ex-companheiros, e para 11,3%, por algum parente. Ainda que em uma proporção alta (29%), a agressão física de mulheres por desconhecidos era menos significativa que a de homens. Considerando-se apenas a população que sofreu agressão física de cônjuges e ex- cônjuges, tem-se que 56% das mulheres procuraram alguma unidade policial, enquanto somente 32,3% dos homens o fizeram. Vale notar que as barreiras verificadas para acesso às instâncias policiais por parte da população negra vítima de roubo ou furto se repetem aqui: enquanto 61,6% das mulheres brancas haviam procurado a polícia, este valor é 10 pontos mais baixo quando se trata de mulheres negras (51,9%). Ao se indagar o motivo de não terem procurado apoio nas instituições de segurança pública, as mulheres informaram que: não queriam envolver a polícia (27,7%), tinham medo de represálias (23%) ou resolveram sozinhas (21,5%). Apenas 9,4% delas acreditavam que este tipo de agressão não era importante a ponto de demandar uma ação policial. Entre os homens que sofreram agressão de suas companheiras, 24,7% acreditavam não ser este um fato importante, e somente 2,3% tinham algum medo de represálias. Ou seja, ainda que este seja apenas um caso muito específico de violência – somente física –, é possível perceber o quanto as características da violência sofrida por homens e por mulheres são diferenciadas e o quanto os aspectos de gênero são determinantes para entendê-las e enfrentá-las. A violência doméstica como violência de gênero tem sido compreendida como a radicalização das desigualdades na relação entre mulheres e homens (SCHAIBER et al, 2005, p.31). Cada vez mais se tem demonstrado que a violência de gênero é socialmente construída e pode ser desconstruída a partir de mudanças nas relações entre os gêneros, em especial, aquelas que resultam em violência. A Lei Maria da Penha aposta na reeducação do autor de violência para alterar o elevado índice de violência contra a mulher no país, no entanto, conforme pesquisa realizada sobre as percepções dos homens sobre a violência doméstica contra a mulher, a maioria dos homens não entende que a Lei Maria da Penha atua para a redução das desigualdades de gênero. A pesquisa detectou também que quase metade dos entrevistados homens considera que a mulher é responsável pelos cuidados com a casa, e 89% considera inaceitável que a mulher não mantenha a casa em ordem; muitos concordam com o perfil tradicional do machão e a maioria considera inaceitáveis certas condutas das mulheres. Voltando aos conceitos, vimos anetriormente que a ONU conceituou violência contra a mulher como qualquer ato de violência, baseado no gênero, que resulte ou possa resultar em dano físico, sexual ou psicológico ou em sofrimento para a mulher, inclusive as ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, podendo ocorrer na esfera pública ou privada. E a Convenção de Belém do Pará, no âmbito da OEA, conceituou violência contra a mulher como qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. A Convenção de Belém do Pará exemplifica algumas formas de violência, destacando que o conceito abrange a violência física, sexual e psicológica (art. 2º): a) ocorrida no âmbito da família, ou unidade doméstica, ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual; b) ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra. O item “c” da Convenção refere-se à violência institucional. Essa violência é caracterizada como aquela praticada pela ação e/ou omissão das instituições que ofertam serviços públicos como hospitais, postos de saúde, escolas, delegacias, Judiciário, entre outras, no exercício de suas funções. É perpetrada por agentes que deveriam garantir uma atenção humanizada, preventiva e reparadora de danos (TAQUETTE, 2009). A título ilustrativo, incluímos abaixo outras formas de violência doméstica reconhecidas internacionalmente (Sardenberg, 2013, p. 3). O sistema de proteção internacional de direitos humanos, portanto, abarcou de forma bem ampla a violência contra a mulher como violência de gênero, tendo por pressuposto que se trata de uma ofensa contra a dignidade humana e manifestação das relações de poder historicamente desiguais. Por que é importante trazer, para o nosso diálogo, esses conceitos que surgiram no âmbito acadêmico e nas normativas internacionais de direitos humanos? A Lei Maria da Penha levou em conta, em seu processo de elaboração, todo esse arcabouço teórico de quase trinta anos de estudos nessa temática; além disso, teve por “pano de fundo” as Convenções CEDAW, Belém do Pará e a previsão constitucional relativa à obrigação de o Estado criar mecanismos para coibir a violência nas relações familiares (art. 226, § 8º.). Ressalte-se, entretanto, que a Lei Maria da Penha privilegiou, especialmente, as condutas que mais engrossam as estatísticas da violência contra a mulher, com base no gênero, que ocorrem nas relações domésticas, familiares e nas relações afetivas, atuais ou passadas, consoante art. 5o de sua redação: Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Nas próximas unidades, vamos conhecer, com mais detalhes, o histórico da lei, inovações e o sistema de proteção às mulheres, bem como os conceitos, formas de violência e as medidas protetivas, definidas pela Lei Maria da Penha. Para concluir, verificamos que a Lei Maria da Penha busca imprimir um novo paradigma de atenção às mulheres em situação de violência, instrumentalizando a atuação de seus agentes com inovações procedimentais e despertando para uma nova concepção de atendimento.

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