A LEI MARIA DA PENHA PARTE 2

REFERÊNCIA: CARTILHA DO SENADO FEDERAL "DIALOGANDO SOBRE A LEI MARIA DA PENHA", ANO 2016 Mulheres, violência e a legislação internacional de direitos humanos Nesta unidade, vamos fazer um percurso pelas normativas internacionais de direitos humanos no sistema de proteção global, da Organização das Nações Unidas (ONU) e do sistema regional da Organização dos Estados Americanos (OEA) e verificar como a violência contra as mulheres passou a ser considerada uma violação de Direitos Humanos, integrando o rol de garantias do sistema de proteção desses organismos internacionais. Quando ouvimos falar em “Direitos Humanos”, é comum fazer uma associação de imediato à Organização das Nações Unidas (ONU), mas, em se tratando de violência contra as mulheres, é também essencial conhecer o papel da Organização dos Estados Americanos (OEA) nessa questão. Foi no contexto internacional da OEA que surgiu a Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher – denominada Convenção de Belém do Pará, e onde Maria da Penha Fernandes denunciou o Brasil por negligência, em razão da morosidade no julgamento de seu ex-marido que, por três vezes, tentou assassiná-la. Para que possamos compreender a temática, vale saber que o Direito Internacional tem por fundamento a proteção dos interesses dos Estados, mas, após a Primeira Guerra Mundial, passa a incorporar os direitos sociais relativos ao trabalho e é criada a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919. Essa medida, tomada em prol dos trabalhadores que retornavam da guerra, é considerada um embrião da proteção internacional dos direitos humanos. No entanto, somente após a constatação dos horrores provocados pela Segunda Guerra Mundial e a incapacidade de os Estados garantirem aos seus cidadãos um dos direitos mais básicos de todo ser humano, o direto à vida, o sistema de proteção passa a incorporar em seus Tratados e Convenções os interesses dos cidadãos (PIOVESAN, 2009). Para a garantia dos direitos a todos os seres humanos, o sistema de proteção internacional de direitos humanos ao longo do tempo adota diversos documentos tais como Pactos, Protocolos, declarações, Planos de Ação, Tratados e Convenções. Aqui, vamos nos reportar especialmente às Convenções, tendo em vista a adoção desse modelo de proteção na especificidade da violência contra as mulheres. Aos poucos, o sistema de proteção se amplia, incorporando mecanismos de denúncia por violação do Estado ou particulares contra as garantias estabelecidas nos atos internacionais de diretos humanos, cujo sistema de proteção é norteado pelos princípios da dignidade humana e indivisibilidade dos direitos. A incorporação dos Atos Internacionais ao ordenamento jurídico brasileiro segue os ritos definidos pela Constituição Federal. Após, passa a se tornar norma de cumprimento obrigatório, gerando para a cidadã ou cidadão o direito de recorrer às instancias internacionais de direitos humanos contra o Estado brasileiro, por ação ou omissão do próprio Estado ou de particulares. Em relação à violência contra as mulheres, duas Convenções ganham destaque: A Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW - sigla da Convenção em inglês), adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1979 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, adotada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em 1994 e ratificada pelo Brasil em 1995. A CEDAW, embora adotada em 1979 pela Assembleia Geral da ONU, somente entrou em vigor em 1981, quando alcançou o número mínimo de 20 (vinte) ratificações. O Brasil ratificou essa Convenção em 1984, mas com reservas. A declaração de “reserva” significa, em linhas gerais, que a Convenção não será integralmente aplicada. O Brasil fez reservas a essa Convenção, no que tange à obrigação de eliminar a discriminação no casamento e na família, as quais só foram suprimidas em 1994. Afinal, quando foram apostas reservas, ainda remanesciam vigentes normas discriminatórias contra as mulheres, especialmente no Código Civil de 1916, no capítulo da Família. Na atualidade, mais de 200 países ratificaram essa Convenção. Para compreender a relevância desses documentos na questão da violência contra as mulheres, é importante trazer a origem dessas Convenções no sistema de proteção internacional de direitos humanos, sob o aspecto da iniciativa e também dos objetivos de transformação social da desigualdade. O primeiro aspecto a se levar em conta é que, sendo essas Convenções específicas na garantia dos direitos de igualdade das mulheres, elas não surgem “naturalmente” no sistema de proteção internacional de direitos humanos. São impulsionadas pelos movimentos de mulheres que levaram para a pauta de discussões dos organismos internacionais a violência contra as mulheres e os mais diversos tipos de violação à sua condição humana. Os primeiros documentos internacionais de direitos humanos adotando o paradigma do sujeito universal “homem”, bem como a família como entidade inviolável (art. 12) não contemplaram a violência contra as mulheres no espaço público, privado e nas relações familiares. Quando a ONU declarou o ano de 1975 como o Ano Internacional da Mulher, os movimentos de mulheres passaram a reivindicar uma Convenção específica com objetivo de obrigar os Estados-Parte a tomar todas as medidas necessárias para a promoção da igualdade entre homens e mulheres na família e em outros campos da vida pública e privada. A Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), adotada em 1979 e amplamente ratificada por vários Países, vem em resposta a essa reivindicação. Logo no art. 1º. define a discriminação contra a mulher como sendo: Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. (Art. 1º.). A partir dessa Convenção, gera para os Estados que a ratificam, como foi o caso do Brasil, em adotar diversas medidas necessárias à eliminação da discriminação contra a mulher em todas as suas formas, entre as quais, modificar os padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados na ideia da inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres (art. 5º. letra a). A Convenção foi um avanço imenso para os direitos das mulheres, mas foi duramente criticada pelo movimento de mulheres internacional pela omissão em seu texto da questão da violência contra a mulher. Conta Télia Negrão (2006) que, mesmo assim, as integrantes do movimento feminista brasileiro passaram a incidir sobre os governos estaduais em busca de mecanismos de combate à violência. Essa omissão somente foi sanada por intermédio da Recomendação nº 19/92, pela qual foi definida a violência contra a mulher como uma forma de discriminação, ou seja, a violência dirigida contra a mulher pelo simples fato de ser mulher, e que a afeta de forma desproporcional. É importante ressaltar que, no ano seguinte, em 1993, a Assembleia Geral da ONU, pela Resolução 48/104, de 20/12/1993, adota a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, definindo essa violência como sendo qualquer ato de violência, baseado no gênero, que resulte ou possa resultar em dano físico, sexual ou psicológico ou em sofrimento para a mulher, inclusive as ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, podendo ocorrer na esfera pública ou privada. A partir dessa declaração, a violência contra as mulheres é compreendida como uma violação de direitos humanos (PIOVESAN, 2009). Na questão da violência contra a mulher, a Declaração e Programa de Ação de Viena, de 1993, e a Declaração e Plataforma de Ação de Beijing, de 1995, constituem importante reforço na proteção dos direitos humanos das mulheres (PIOVESAN, 2009). Conforme Lia Zanotta Machado (1995), o conceito de gênero, adotado pela ONU, veio do acúmulo teórico feminista acerca do tema, no qual, em linhas gerais, refere-se aos padrões culturais e sociais que ditam o ser mulher e o ser homem. É um conceito gerado a partir da perspectiva da desconstrução das ideias naturalizadas de mulher e homem (MACHADO, 1995). Esse conceito é relativamente bem aceito nas instâncias internacionais, pois se coaduna com as normativas de direitos humanos que propõem mudanças sociais e culturais que geram desigualdades sociais, inclusive de gênero. A Declaração de Viena de 1993 trouxe outros efeitos positivos na questão da violência contra as mulheres. Foi adotada a transversalidade de gênero, significando que outros órgãos da ONU, além do Comitê CEDAW, deveriam abordar regularmente os direitos humanos das mulheres. Assim, no âmbito da Comissão dos Direitos Humanos, foi designada Radhika Coomaraswamy (Sri Lanka) Relatora Especial da Comissão Especial para conhecer a violência contra a mulher no mundo. Os resultados descortinaram um quadro grave de violações contra as mulheres no espaço doméstico e familiar, na comunidade e por vias institucionais do Estado, inclusive, a violência contra a mulher em situação de prisão e a violência contra a mulher em situação de conflito armado e refugiadas. Vamos, agora, conhecer um pouco sobre a Organização dos Estados Americanos? A OEA foi instituída em 1948, adotando como um de seus princípios a proteção das pessoas, sem distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo. É um sistema regional, pois congrega países do continente americano e tem por objetivo fortalecer a cooperação entre esses países nas questões econômicas, sociais e culturais. Objetivam fortalecer os princípios democráticos, os direitos humanos e o incentivo à paz. A OEA adotou, em 1994, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará. O Brasil ratificou essa Convenção em 1995. A iniciativa de elaboração dessa norma partiu das integrantes da Comissão Interamericana de Mulheres (CIM), órgão técnico especializado de assessoramento nas questões referentes aos direitos das mulheres na OEA, que incorporou em sua pauta a preocupação advinda dos movimentos contemporâneos feministas nas Américas que denunciavam a existência desse problema social grave, que atingia as mulheres e a omissão do Estado nessa questão. Segundo a Comissão Interamericana de Mulheres, a adoção da Convenção de Belém do Pará, assim conhecida pelo local onde foi adotada, refletiu um poderoso consenso entre atores, estatais e não estatais. Para as integrantes da CIM, a violência compreende a agressão física, sexual e também a psicológica contra as mulheres. Não se resume apenas ao espaço privado, da família, mas em todos os setores da sociedade. Pela primeira vez, passa a constar de uma Convenção, com natureza obrigatória para os países que a assinam e a ratificam, que a violência contra as mulheres é uma violação de direitos humanos. Além disso, converte-se essa Convenção em “uma verdadeira redefinição do direito interamericano sobre direitos humanos para aplicá-lo com uma orientação concreta de gênero”. A Convenção de Belém do Pará define a violência contra a mulher da seguinte forma: Artigo 1 Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. Artigo 2 Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica: a. ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual; b. ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e c. perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra A CIM é constituída pelas representantes dos países que compõem a OEA. A formação da CIM é antiga e remonta à época da constituição da OEA. Naquela ocasião, um grupo de mulheres reuniu-se com o propósito de reivindicar o direito de voto e a modificação da condição jurídica da mulher nos países pan-americanos, convencidas de que, no âmbito internacional, obteriam um aliado, frente às resistências de seus governos: “As mulheres, que já estavam se organizando em nível nacional, compreenderam que a desigualdade baseada no gênero não somente existia em seus países, mas também em todo o hemisfério. Confiavam que ao tratar esses temas no âmbito internacional tenderiam a obter maior influência junto aos seus próprios governos” (tradução livre) A adesão ao sistema internacional e regional de direitos humanos é voluntária, mas uma vez ratificada a Convenção ou outro ato internacional, o país se vincula à comunidade internacional, gerando a obrigação de cumprimento das normas acordadas. Cada ato internacional de direitos humanos vincula-se a um Comitê de monitoramento e fiscalização que trabalha a partir de solicitação de Informes aos Estados acerca da situação de direitos humanos no País. Buscam informações junto às Organizações Não Governamentais ou outras entidades da sociedade civil, realizam visitas, recebem denúncias, entre outras ações, para, ao final, avaliarem se as normativas de direitos humanos estão, realmente, sendo cumpridas. 1) Adesão voluntária 2) Ratificação da convenção ou outro Ato Internacional 3) Vinculação à Comitê de monitoramento e fiscalização 4) Realização de visitas 5) Busca de informações juntos a ONGs e outras entidades 6) Solicitação de Informes aos Estados 7) Recebimento de denúncias 8) Avaliação da implementação das normativas Mas como fazer chegar nossas demandas a esses organismos? O caso Maria da Penha Fernandes contra o Estado Brasileiro, levado à Comissão Interamericana da Organização dos Estados Americanos (OEA), com base na Convenção de Belém do Pará, é bem ilustrativo sobre como esse processo ocorre. Em 1998, Maria da Penha e duas Organizações Não Governamentais, CEJIL e CLADEM, entram com petição contra o Estado brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, denunciando a tolerância do Estado brasileiro com a violência doméstica, com fundamento na Convenção de Belém do Pará, artigos 3, 4, a,b,c,d,e,f,g, 5 e 7 e outros documentos de direitos humanos do sistema de proteção da OEA. O Estado brasileiro não ofereceu resposta à denúncia. A conclusão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos consta do Relatório 54/01, pelo qual se entendeu que o Estado brasileiro violou os direitos às garantias judiciais e a proteção judicial em prejuízo de Maria da Penha Fernandes e que a violação ocorre como parte de um padrão discriminatório com respeito à tolerância da violência doméstica contra as mulheres no Brasil. Com base nisso, fez algumas recomendações, entre as quais:  medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a violência doméstica;  multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica, bem como prestar apoio ao Ministério Público na preparação de seus informes judiciais;  incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como ao manejo dos conflitos intrafamiliares Interessante observar que, há um ano da denúncia do Brasil à Corte Interamericana de Direitos Humanos, esse órgão já alertava para a necessidade de se adotar medidas legais e de incidência prática na prestação da justiça que possibilitasse uma resposta mais apropriada aos delitos de violência contra a mulher, conforme consta do Informe de 1997. Em relação ao monitoramento realizado pelo Comitê CEDAW, desde o primeiro Relatório de Radhika Coomaraswamy, da Comissão de Direitos Humanos da ONU, o Brasil vem sendo compelido a criar uma legislação específica para prevenção e proteção das mulheres em situação de violência. Em 2002, analisando o relatório enviado pelo Brasil, o Comitê CEDAW avalia que a situação de violência doméstica contra as mulheres não está sendo suficientemente enfrentada e recomenda, entre outras ações, a adoção de legislação específica para tratar do problema, bem como formas de monitoramento para avaliação de sua efetividade. O sistema de proteção internacional, gradativamente, incorporou normativas de proteção aos direitos humanos das mulheres. Esses mecanismos, somados ao constante monitoramento, têm sido essenciais para a cobrança de mudança da legislação e políticas públicas de prevenção e proteção às mulheres em situação de violência, como são exemplos a criação das delegacias especiais de atendimento à mulher, Centros de Referência, Casas Abrigo e, mais tarde, a criação da Lei Maria da Penha, conforme veremos nas unidades seguintes.

Comentários