A Nova Sistemática Processual Civil e a Responsabilidade Civil Subjetiva do Juiz Diante de Sua Inércia na Efetivação da Tutela Jurisdicional de Urgência

Aimbere Francisco Torres

Advogado em Bauru/SP; Especialista em Direito
Privado pela Instituição Toledo de Ensino (ITE);
Mestre em Ciência tJurídica pela Universidade
Estadual de Direito do Norte Pioneiro; Professor
da Faculdade de Direito de Bauru - Instituição
Toledo de Ensino (ITE), da Faculdade de Direito
de Ourinhos (FIO), da Universidade Estadual
Paulista (UNIP), do Curso de Especialização da
Faculdade Arthur Thomas e da Escola da
Magistratura do Paraná.

RESUMO: Este estudo procura chamar a atenção para o fato de que, com as reformas experimentadas pelo Código de Processo Civil, é perfeitamente admissível responsabilizar-se subjetivamente o juiz, quando diante do caso concreto, deixar de conceder tutela jurisdicional de urgência, ou ainda, abster-se de se pronunciar quanto ao mérito da demanda, fazendo com que sua desídia onere excessivamente as partes ou leve à perda do direito postulado.

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Aspectos Gerais da Sistematização da Responsabilidade Civil no Código Civil de 2002; 3 Perdas e Danos por Ofensa aos Direitos da Personalidade; 4 Da Liquidação do Dano Moral; 5 Da Responsabilidade Civil Subjetiva e Objetiva; 6 As Críticas da Teoria Unitária à Dualidade de Tratamento da Matéria; 7 A Relativização do Art. 333 do Código de Processo Civil; 8 Outros Aspectos da Responsabilidade Civil; 9 O Processo e os Direitos Fundamentais; 10 Da Responsabilidade Subjetiva do Juiz, em Face da Demora da Prestação da Tutela Jurisdicional; 11 Conclusão; 12 Referências Bibliográficas.
   
       
    1 Introdução    
Com efeito, a responsabilidade civil, conjugada com as novas reformas experimentadas pelo Direito Processual Civil, vêm sofrendo um elastecimento a fim de adequá-las às novas necessidades de nosso ordenamento jurídico.
Assim, nessa nova conjuntura a função jurisdicional assume um papel de importância ímpar na efetivação das necessidades sociais, principalmente para aqueles que postulam a tutela jurisdicional.
Em conseqüência disso, a ultrapassada ótica de que o juiz somente deve prestar a tutela jurisdicional diante de uma cognição exauriente tem-se como inadequada, diante da reparabilidade de danos decorrentes da atividade jurisdicional, máxime diante das tutelas de urgência.
É certo que o tema é inspirador de acirradas divergências, notadamente no que diz respeito ao rompimento a resistência de se responsabilizar, subjetivamente, o magistrado, pela sua inércia na prestação da tutela jurisdicional.
   

    2 Aspectos Gerais da Sistematização da Responsabilidade Civil no Código Civil de 2002    
O legislador pátrio, ao cuidar da responsabilidade civil no Código Civil de 2002, o fez em poucos artigos, sendo que, em sua Parte Geral, notadamente nos arts. 186, 187 e 188, traçou o regramento genérico da responsabilidade civil, tendo como premissa a lei, ao mesmo tempo em que enumera as hipóteses da ocorrência de suas excludentes.
Na Parte Especial, a responsabilidade civil vem positivada num primeiro momento no Livro I do Direito das Obrigações, Título IV, Capítulo I, das Disposições Gerais, quando no art. 389, também de forma genérica, cuidou o legislador da responsabilidade classificada doutrinariamente como contratual ou negocial, obviamente originada do inadimplemento contratual.
No Título IX, Capítulo I, da Parte Especial, o Código dedica-se às questões pertinentes à obrigação de indenizar, ao dispor no art. 927: "Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Depreende-se, pois, do aludido dispositivo de lei, que a vontade humana pode, em determinadas situações, consubstanciar-se em fonte geradora de atos ilícitos, usualmente chamados de extracontratual, fazendo surgir a obrigação de indenizar ou de ressarcir o prejuízo causado.
Daí, conclui-se tratar-se a responsabilidade civil de um instituto que integra o Direito das Obrigações, aliás, neste sentido, precisa a lição de Carlos Roberto Gonçalves:
"O instituto da responsabilidade civil é parte integrante do direito obrigacional, pois a principal conseqüência da prática de um ato ilícito é a obrigação que acarreta, para o seu autor, de reparar o dano, obrigação esta de natureza pessoal, que se resolve em perdas e danos.
Costuma-se conceituar a 'obrigação' como o 'vínculo jurídico que confere ao credor o direito de exigir do devedor o cumprimento de determinada prestação'. A característica principal consiste no direito conferido ao credor de exigir o adimplemento da prestação. É o patrimônio do devedor que responde por suas obrigações.
As fontes das obrigações previstas no Código Civil são: a vontade humana (os contratos, as declarações unilaterais da vontade e os atos ilícitos) e a vontade do Estado (a lei).
As obrigações derivadas dos 'atos ilícitos' são as que se constituem por meio de ações ou omissões culposas ou dolosas do agente, praticadas com infração a um dever de conduta e das quais resulta dano a outrem. A obrigação que, em conseqüência, surge é a de indenizar ou ressarcir o prejuízo causado." (Responsabilidade civil, 2006, p. 2)
Não se pode perder de mira, porém, o fato de que o tema ora analisado não se encontra positivado exclusivamente nos Capítulos e Títulos acima mencionados, ao revés, ao tratar da responsabilidade civil, optou o legislador por dispersar a matéria pelo interior do Código Civil, desta forma, a responsabilidade civil encontra-se positivada, de alguma forma, nos arts. 12, 43, 1.278, 1.385, § 3º, dentre outros.
   
    3 Perdas e Danos por Ofensa aos Direitos da Personalidade    
Consoante se depreende do art. 12 do Código Civil, existe a possibilidade de se reclamar perdas e danos por ofensa aos direitos da personalidade.
Na concepção de Eugênio Facchini Neto, o fato de o novel legislador ter inserido logo nos primeiros artigos do Código Civil um capítulo referente aos direitos da personalidade, afigura-se numa das mais importantes inovações:
"(...) introduzido logo nos primeiros artigos do Código (arts. 11, 21). Embora a sistematização adotada seja tímida e lacunosa, deve ser aplaudida vigorosamente. Isto porque conquanto se pudesse reputar dispensável tal regulamentação, levando em consideração que uma ampla tutela dos direitos da personalidade pode ser inferida e concretizada a partir da própria Constituição Federal, o caráter pedagógico de tal previsão é sobremodo importante, por revelar um novo sistema de valores, chave de leitura oferecida ao intérprete já no início do Código. Tal previsão pode ser interpretada como um sinal da atenuação do patrimonialismo reinante no direito civil clássico (embora o Código tenha frustrado um pouco aqueles que esperavam um avanço mais significativo rumo à chamada despatrimonialização do direito civil), e como um impulso em direção à desejada repersonalização do direito privado. Ou seja, um direito em que a pessoa humana (e sua dignidade existencial) passa a ser colocada no centro do sistema (o que nada tem a ver com o individualismo reinante no direito civil liberal oitocentista), no lugar do patrimônio. Ou nas palavras do Prof. Luiz Edson Fachin, deve-se 'levar em consideração a prevalência da proteção da dignidade humana em relação às relações jurídicas patrimoniais. Isso implica dizer que será inconstitucional um diploma legal que privilegie uma visão patrimonialista em detrimento de uma concepção vinculada à proteção do ser humano em concreto'." (Da responsabilidade civil no novo código, 2002, p. 152)
Aliás, neste particular, irrepreensível o entendimento de Luiz Edson Fachin, uma vez que, se a Constituição vigente elegeu em seu âmbito a dignidade da pessoa humana como o alicerce fundamental do Estado Democrático de Direito, art. 1º, inciso III, deixou de reconhecer o ser humano como meio da atividade estatal, mas sim como sua essência.
Bastante elucidativa é a lição de Sarlet:
"Ainda que se possa controverter a respeito da afirmação de que o constituinte tenha tido a intenção de instaurar, também entre nós, uma ordem constitucional embasada num direito natural, mas dotada de plena eficácia normativa, o fato é que não há como desconsiderar, pena de omitirmos aspectos essenciais à compreensão do sentido e conteúdo da dignidade da pessoa humana, a vertente histórica e filosófica do princípio, inclusive sua íntima relação com a doutrina jusnaturalista, tal como destacou, muito embora em relação ao direito espanhol, González Pérez. Tal aspecto, todavia, por ser diretamente vinculado ao problema de significado e conteúdo da noção de dignidade da pessoa humana ao longo dos tempos, já obteve alguma atenção no capítulo anterior, razão pela qual aqui não será retomado. Em verdade, tendo sido reconhecida pela ordem jurídica estatal (expressa ou implicitamente), verifica-se que a dignidade da pessoa passou a integrar o direito positivo vigente e é nesta condição que ora vai analisada, sem que com isso se esteja a desconsiderar e minimizar a relevância de uma fundamentação filosófica da dignidade, que, de resto, já foi objeto de referência nesta obra." (Sarlet, 2000, p. 65-66)
       
    4 Da Liquidação do Dano Moral    
Contanto mereça aplausos a nova sistemática do Código Civil, no que se refere ao tratamento da responsabilidade civil, descurou-se o legislador, quando da disciplina da liquidação do dano moral. Tal fato não passou despercebido aos aguçados olhos do eminente Desembargador Carlos Roberto Gonçalves:
"O Projeto de Lei nº 634-B, de 1975, que se transformou no novo Código Civil, melhor sistematizou a matéria, dedicando um título especial e autônomo à responsabilidade civil. Contudo, repetiu, em grande parte, ipsis litteris, alguns dispositivos, corrigindo a redação de outros, trazendo, porém, poucas inovações. Perdeu-se a oportunidade, por exemplo, de se estabelecer a extensão e os contornos do dano moral, bem como de se disciplinar a sua liquidação, prevendo alguns parâmetros básicos destinados a evitar decisões díspares, relegando novamente à jurisprudência essa tarefa." (ob. cit., p. 3)
A nosso ver, é o novel ordenamento merecedor das críticas que lhe são atribuídas pelos estudiosos do direito, pois diante da ausência de parâmetros para a quantificação do dano moral, doutrina e jurisprudência encontram-se obrigadas a se valerem do bom-senso e da experiência do magistrado, a fim de fixar o quantum debeatur, tendo como pano de fundo, de um lado, a peculiaridade da lide deduzida em juízo e, de outro, a realidade econômica das partes.
O fato é que o critério subjetivista adotado para fixação do dano moral, como não poderia deixar de ser, é fonte geradora de inseguranças, incertezas e instabilidades.
A propósito, confira-se o acórdão proferido na Apelação Civil nº 283.002-4, da 18ª Câmara Civil, do Tribunal de Justiça do Paraná, da lavra do Desembargador Wilde Pugliese, que elevou de R$ 7.000,00 para 15.000,00 os danos morais para o caso de entrega do resultado de exame de DNA por equívoco, o que gerou a convicção de que determinada pessoa não seria o pai de sua filha.
Na oportunidade, deixou o relator consignado que:
"(...) Pertinente é o ensinamento doutrinário de Carlos Dias Motta, Juiz de Direito na Comarca de São Paulo, in 'Reparação do dano moral por abalo de crédito', publicado na Revista dos Tribunais, vol. 760, p. 74 e 94, verbis:
'Na verdade, não há o que falar em equivalência entre o dinheiro proveniente da indenização e o dano, pois não se pode avaliar o sentimento humano. Não se afigura possível, então, a reparação propriamente dita do dano, com retorno ao statu quo ante e com a restitutio in integrum. Na impossibilidade de reparação equivalente, compensa-se o dano moral com determinada quantia pecuniária, que funciona como lenitivo e forma alternativa para que o sofrimento possa ser atenuado com as comodidades e os prazos que o dinheiro pode proporcionar. A par disso, a condenação pecuniária também tem natureza punitiva, sancionando o causador do dano. Como corolário da sanção, surge ainda a função preventiva da indenização, pois esta deverá ser dimensionada de tal forma a desestimular o ofensor a repetição do ato ilícito e conduzi-lo a ser mais cuidadoso no futuro.'"
Imperioso reconhecer-se que a questão da reparação do dano moral em nosso ordenamento jurídico leva em consideração, numa de suas etapas, a situação fática dos indivíduos em conflito frente ao contexto do sistema social, o que, sem sombras de dúvidas, leva ao comprometimento da idéia de justiça, transformando-se em uma utópica solução do conflito de interesses.
John Rawls, em sua obra Uma teoria de justiça, atribui à questão a relevância que efetivamente merece:
"11. Os dois princípios da justiça
A primeira afirmação dos dois princípios é a seguinte:
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.
(...)
Na aplicação dos dois princípios de justiça à estrutura básica da sociedade, tomamos a posição de certos indivíduos representativos e consideramos qual é a visão que eles têm do sistema social. A perspectiva dos que estão nessas situações define um ponto de vista geral adequado. Mas certamente nem todas as posições sociais são relevantes. Pois não só existem, por exemplo, produtores rurais, mas também produtores de laticínio, produtores de grãos, agricultores que cultivam grandes extensões de terra, o mesmo se aplicando a outras ocupações e grupos indefinidamente. Não podemos ter uma teoria coerente e admissível se levarmos em consideração essa multiplicidade de posições. É impossível avaliar tantas reivindicações concorrentes. Portanto, precisamos identificar certas posições como mais básicas que as outras e capazes de fornecer um ponto de vista mais apropriado para o julgamento do sistema social. Assim, a escolha dessas posições se torna parte da teoria da justiça." (p. 64 e 100)
Ora, a avaliação e adequação dessas condições fáticas encontram-se em nosso sistema jurídico nas mãos de um Poder Judiciário anacrônico, diga-se de passagem, em todos os seus aspectos.
Some-se a isso o fato de que os conflitos de interesses são originados nas entranhas de uma sociedade cuja marca indelével é a exclusão social, gerada anos após anos por uma elite econômica dominante e inescrupulosa.   
Daí, forçoso é concluir ser ao aplicador da lei impossível, quando da solução dos conflitos de interesses, valorar e aplicar as situações fáticas acima mencionadas, a fim de adequá-las aos dois princípios de justiça propostos por Rawls.
Destarte, temos para nós que a satisfação do dano moral em nosso ordenamento jurídico não passa de um sonho de uma tarde de verão.
A doutrina italiana, extremamente sensível à questão, referindo-se ao dano moral, não se utiliza da palavra "indenização", vale-se para tanto de "valoração eqüitativa", por reconhecer a altíssima carga de subjetividade da sentença.
Com efeito, a lição de Ricardo Yagüez:
"1. Hoy se insiste especialmente, por ejemplo, en la circunstancia de que la reparación del daño a la persona (en todos sus componentes, esto es, tanto el daño moral, como el daño a la salud, como el daño patrimonial) excluye la aplicación de lo que podría denominarse un modelo matemático o de ecuación, por cuya virtud sea posible decir que una determinada indemnización repara en efecto el daño que la víctima ha sufrido.
La doctrina italiana, en concreto, insiste en que en este caso no cabe hablar propiamente de indemnización, sino de 'valoración equitativa', en atención al considerable grado de apreciación subjetiva que lleva consigo la sentencia. Quizá porque, como escribió Forchielli en afortunada expresión, el daño no patrimonial, y en concreto el daño a la persona, debe ser expresado sólo en términos de relevancia moral y social. O porque, como el mismo autor señaló muy gráficamente, en casos el juez se encuentra sometido al compromiso de atribuir, a través de una variada utilización del metro pecuniário, un 'consuelo' indirecto como compensación del daño sufrido por la víctima. También por eso, Calabresi, refiriéndose a los daños personales, ha manifestado que 'la completa compensación es una ilusión'." (In: Algunas previsiones sobre el futuro de la responsabilidad civil: con especial atención a la reparación del daño, 1995, p. 59)
De outro lado, a doutrina argentina, ao tratar do tema, estabelece dez hipóteses a serem consideradas pelo aplicador da lei, com o intuito de tornar o mais objetivo possível a quantificação do dano moral.
Neste sentido, propõe Mosset Iturraspe, referindo-se a Trigo Represas e López Mesa: 1) não à indenização simbólica, 2) não ao enriquecimento injustificado, 3) não à tarifação "piso" ou "teto", 4) não ao percentual do dano patrimonial, 5) não à determinação calcada exclusivamente no "prudente arbítrio", 6) sim à consideração da gravidade do dano, 7) sim à atenção às peculiaridades do caso, relativas à vítima e ao ofensor, 8) sim à harmonização em casos semelhantes, 9) sim às formas de compensação que proporcionem prazeres, alegrias ao ofendido e 10) sim à fixação de valores que possam ser efetivamente pagos, ou seja, compatíveis ao contexto econômico do país e à realidade da vida (In: Tratado de la responsabilidad civil. t. I e IV. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 548-549; 714 e ss.).
Já no direito inglês os danos morais geradores de indenizações são somente aqueles inseridos em uma das seguintes rubricas: a) pain and suffering (dor física ou psíquica); b) loss of expectation of life (presumível diminuição da duração da vida da vítima); c) loss of amenities of life (impossibilidade de gozar de alguns dos prazeres do mundo); e d) nervous shock (fortes abalos emocionais).
   
    5 Da Responsabilidade Civil Subjetiva e Objetiva    
Por sua vez, filiou-se o novel legislador, conforme se pode constatar da leitura dos arts. 186 e 927, caput, ambos do Código Civil, à teoria subjetiva, a qual estabelece, como pressuposto da obrigação de reparar o dano, o comportamento doloso ou culposo de seu autor.
Com efeito, Eugênio Facchini Neto ao comparar a redação do atual art. 186 com a de seu correspondente no Código Civil de 1916, qual seja, o art. 159, observa:
"(...) enquanto o art. 159 falava em violar direito, ou causar prejuízo a outrem, a nova cláusula refere 'violar direito e causar dano a outrem'. Se a alteração fosse em sentido contrário, poder-se-ia sustentar que o legislador estaria acolhendo a idéia de uma responsabilidade civil de cunho punitivo ou eventualmente dissuasório, e não de natureza reparatória/compensatória. Isto porque a obrigação de indenizar poderia decorrer, em tal hipótese, tanto do fato de ter sido causado um prejuízo quanto na hipótese de uma mera violação do direito. Todavia, uma interpretação sistemática consolidada já então conduzia ao entendimento de que um dos requisitos da responsabilidade civil era justamente a presença de um dano (material ou moral). Assim, o novo Código Civil apenas deixou claro o que antes era implícito." (ob. cit., p. 164-165)
O parágrafo único do mesmo art. 927 do Código Civil de 2002 dispõe:
"Haverá obrigação de reparar o dano independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem." (g.n.)
Com isso, acolhe citado dispositivo a responsabilidade objetiva, ou seja, admite-se em nosso ordenamento jurídico reconhecer-se a obrigação de reparar o dano independentemente de culpa.
Tal situação pode nos levar à seguinte indagação: O Código Civil pátrio filiou-se à teoria subjetiva prevista nos arts. 186 e 927, caput, a qual tem como pressuposto a culpa para reparação do dano ou a Teoria Objetiva, positivada no parágrafo único do art. 927, de onde se extrai a possibilidade de responsabilidade sem culpa?
A resposta a tal questionamento pode ser obtida nos ensinamentos de Carlos Roberto Gonçalves:
"O Código Civil brasileiro filiou-se à teoria 'subjetiva'. É o que se pode verificar no art. 186, que erigiu o dolo e a culpa como fundamentos para a obrigação de reparar o dano. Espínola, ao comentar o dispositivo correspondente a este Código Civil de 1916, teve estas palavras: 'O Código, obedecendo à tradição do nosso direito e à orientação das legislações estrangeiras, ainda as mais recentes, abraçou, em princípio, o sistema da responsabilidade subjetiva'.
A responsabilidade subjetiva subsiste como regra necessária, sem prejuízo da adoção da responsabilidade objetiva, em dispositivos vários e esparsos. Poderiam ser lembrados, como de responsabilidade objetiva em nosso diploma civil, os arts. 936, 937 e 938, que tratam, respectivamente, da responsabilidade do dono do animal, do dono do prédio em ruína e do habitante da casa da qual caírem coisas.
(...)
Em diversas leis esparsas, a tese da responsabilidade objetiva foi sancionada: Lei de Acidentes do Trabalho, Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei nº 6.453/77 (que regula a responsabilidade do operador de instalação nuclear), Decreto Legislativo nº 2.681, de 1912 (que regula a responsabilidade civil das estradas de ferro), Lei nº 6.938/81 (que trata dos danos causados ao meio ambiente), Código de Defesa do Consumidor e outras.
Isto significa que a responsabilidade objetiva não substitui a subjetiva, mas fica circunscrita aos seus justos limites." (ob. cit., p. 23-24)
Com efeito, o entendimento do supracitado autor vem referendado na lição de Caio Mário da Silva Pereira:
"(...) a regra geral, que deve presidir à responsabilidade civil, é a sua fundamentação na idéia de culpa; mas, sendo insuficiente esta para atender às imposições do progresso, cumpre ao legislador fixar especialmente os casos em que deverá ocorrer a obrigação de reparar, independentemente daquela noção. Não será sempre que a reparação do dano se abstrairá do conceito de culpa, porém quando o autorizar a ordem jurídica positiva. É neste sentido que os sistemas modernos se encaminham, como, por exemplo, o italiano, reconhecendo em casos particulares e em matéria especial a responsabilidade objetiva, mas conservando o princípio tradicional da imputabilidade do fato lesivo. Insurgir-se contra a idéia tradicional da culpa é criar uma dogmática desafinada de todos os sistemas jurídicos. Ficar somente com ela é entravar o progresso." (Caio Mário, 1990, p. 507)
Segundo a melhor doutrina, o parágrafo único do art. 927 teve como fonte inspiradora o art. 2.050 do Código Civil italiano de 1942:
"Chiunque cagiona danno ad altri nello svolgimento di un attività pericolosa, per sua natura o per la natura dei mezzi adoperati, e tenuto al risarcimento, se non prova di avere adottado tutte le misure idonee a evitare il danno."
Aliás, oportuna é a lição do ilustre mestre da Universidade de Gênova, Pietro Trimachi:
"1. La netta separazione dell'indagine sull'àmbito della responsabilitá oggetiva rispetto a quella sull'àmbito della responsabilitá da atto illecito è a necessária conseguenza di un'impostacione critica, secondo la quale il problema dell'area del dano risarcibe non può risolversi che con referimento alla funzione della responsabilità. Abbiamo visto suo luogo che la responsabilitá civile per atto illícito presenta due aspetti inscindibilmente connessi: de una parte essa tende alla reintegrazione del patrimonio del danneggiato; dall'altra, essa constituisce una sanzione contro chi si è comportato in modo vietato, e la cui minaccia contribuisce previamente a scoraggiare il compimento di atti illeciti. In relazione a queste due funzioni abbiano costruito i limiti della responsabilitá da atto illecito.
Anche la responsabilitá oggetiva per rischio lecito há due funzioni, fra loro inscindibilmente connesse e simmetriche con quelle proprie della responsabilitá da atto illecito. Per um verso essa tende alla reintegrazione del patrimonio del danneggiato; per altro verso essa constituise una pressione economica su chi há organizzato l'ativitá rischiosa (per lo piú: um imprenditore) così da indurre a che questa sia razionalizzata (da un punto di vista economico generale).
La prima funzione coincide con quella simmetrica della responsabilitá da atto illecito. La diversitá si manifesta invece nella seconda funcione, perché è vero che in entrambi i casi il fine ultimo è quello di ottenere una riduzione dei fatti dannosi, questo fine ultimo viene perseguito là com la repressione incondizionata di singoli atti vietati, qui con l'attribuzione al responsabile del costo di un rischio consentito e pertinente a un'attivitá piurrosto che a singoli atti." (1967, p. 133-134)
Ora, repetia-se aos quatro ventos, na vigência do velho código civilista, o velho brocardo: o fundamento da responsabilidade civil decorre da culpa. Atento aos novos rumos e anseios do mundo moderno, o novel legislador de 2002 ousou quebrar essa velha máxima.
Ao inserir no parágrafo único do art. 927 uma segunda possibilidade para responsabilidade civil, qual seja, a obrigação de reparar o dano independentemente de culpa, aferida objetivamente, quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano não implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Ressalte-se que nosso novel ordenamento, ao contrário do estatuído no art. 2.050 do Código Civil italiano, não prevê hipótese de excludente da responsabilidade objetiva, cabendo desta forma ao magistrado peninsular extrair da experiência e jurisprudência os critérios dos quais deve adjetivar como perigosa ou não a atividade.
Assim como no direito comparado, caberá in casu ao juiz a identificação de uma atividade como perigosa ou não, valendo-se para tanto de uma análise tópica. Alerta-nos, porém, Facchini Neto não se tratar de um "decisionismo judicial, em que cada juiz possa desenvolver um critério próprio. Ao contrário, além da análise tópica, não se pode jamais olvidar que o direito configura um sistema, embora aberto e móvel" (ob. cit., p. 167).
Destarte, deverá o magistrado mostrar-se atento às condições do caso concreto, posto que deva mostrar-se sensível às noções de periculosidade de sua comunidade. Além de socorrer-se da jurisprudência, deve também ater-se à legislação previdenciária e trabalhista.
Para Miguel Reale, a responsabilidade objetiva adotada pelo novo código é fruto do acolhimento do princípio da solidariedade:
"(...) em princípio, responde-se por culpa. Porém, se aquele que atua na vida jurídica desencadeia uma estrutura social que, por sua própria natureza, é capaz de pôr em risco os interesses e os direitos alheios, a sua responsabilidade passa a ser objetiva e não mais subjetiva." (Saraiva, 1986, p. 10)
De outro lado, o Código Civil, em seus arts. 389, 395 e seguintes, estabelece a responsabilidade civil em razão de inadimplemento contratual, ou dito de outra forma, tendo como fato gerador da obrigação de indenizar o descumprimento daquilo que foi previamente avençado entre os contratantes.
Com efeito, referida obrigação é classificada pela doutrina como responsabilidade contratual, distinguindo-se da responsabilidade prevista nos arts. 186 a 188 e 927 e seguintes do Código Civil, a qual é rotulada de extracontratual ou aquiliana.
       
    6 As Críticas da Teoria Unitária à Dualidade de Tratamento da Matéria    
Os adeptos da Teoria Unitária ou Monista não pouparam críticas ao novel legislador quanto a essa dualidade de tratamento, quando ao positivar a matéria no Código de 2002, já que segundo eles a solução é a mesma para ambos os aspectos da responsabilidade.
Carlos Roberto Gonçalves, no entanto, expõe de maneira clara e muito didática as diferenças existentes entre as duas espécies de responsabilidade:
"A primeira, e talvez mais significativa, diz respeito ao ônus da prova. Se a responsabilidade é contratual, o credor só está obrigado a demonstrar que a prestação foi descumprida. O devedor só não será condenado a reparar o dano se provar a ocorrência de alguma das excludentes admitidas em lei: culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior. Incumbe-lhe, pois, o onus probandi.
No entanto, se a responsabilidade for extracontratual, a do art. 186 (um atropelamento, por exemplo), o autor da ação é que fica com o ônus de provar que o fato se deu por culpa do agente (motorista). A vítima tem maiores probabilidades de obter a condenação do agente ao pagamento da indenização quando a sua responsabilidade deriva do descumprimento do contrato, ou seja, quando a responsabilidade é contratual, porque não precisa provar a culpa. Basta provar que o contrato não foi cumprido e, em conseqüência, houve o dano.
Outra diferenciação que se estabelece entre a responsabilidade contratual e a extracontratual diz respeito às fontes de que promanam. Enquanto a contratual tem a sua origem na convenção, a extracontratual a tem na inobservância do dever genérico de não lesar, de não causar dano a ninguém (neminem laedere), estatuído no art. 186 do Código Civil.
Outro elemento de diferenciação entre as duas espécies de responsabilidade civil refere-se à capacidade do agente causador do dano. Josserand entende que a capacidade sofre limitações no terreno da responsabilidade contratual, sendo mais ampla no campo da responsabilidade extracontratual. A convenção exige agentes capazes ao tempo de sua celebração, sob pena de nulidade e de não produzir efeitos indenizatórios. Na hipótese de obrigação derivada de um delito, o ato do incapaz pode dar origem à reparação por aqueles que legalmente são encarregados de sua guarda.
(...)
Outro elemento de diferenciação poderia ser apontado no tocante à graduação da culpa. Em regra, a responsabilidade, seja extracontratual (art. 186) seja contratual (arts. 389 e 392), funda-se na culpa. A obrigação de indenizar, em se tratando de delito, defluiu da lei, que vale erga omnes.
Conseqüência disso seria que, na responsabilidade delitual, a falta se apuraria de maneira mais rigorosa, enquanto na responsabilidade contratual ela variaria de intensidade de conformidade com os diferentes casos, sem, contudo, alcançar aqueles extremos a que se pudesse chegar na hipótese da culpa aquiliana, em que vige o princípio do in lege Aquilia et levíssima culpa venit." (ob. cit., p. 28-29)
Nesta linha de raciocínio, consideramos equivocada a crítica dirigida contra o novel legislador, posto se depreender dos ensinamentos acima que os seguidores da Teoria Monista observaram a questão envolvendo o tratamento da matéria somente sob uma única ótica, qual seja, a do direito material, não se detiveram, em momento algum, em visualizá-la sob o ângulo do direito processual, notadamente no que se refere às questões probatórias.
       
    7 A Relativização do Art. 333 do Código de Processo Civil    
Todavia, há que se ter em conta que o entendimento, segundo o qual o ônus da prova deva recair sobre quem afirma e não sobre quem nega, conforme o estatuído no art. 333 do Código de Processo Civil, vem sofrendo certa relativização.
Neste sentido, vale reproduzir expressivo pensamento de Marcelo J. López Mesa:
"Este derecho dogmático, excesivamente influido por la consideración del proceso como un combate judicial, no podía tener como correlato sino una férrea imposición del onus probandi en cabeza de quien afirmaba un hecho. No había espacio allí para las nuevas ideas, para las corrientes progresistas que finalmente vendrían a derribar esquemas vetustos, de la mano de las doctrinas de la CSJN del exceso ritual manifiesto y de la verdad jurídica objetiva, amén de las enseñanzas de importantes autores.
(...)
Algunos autores, a manera de teorías superadoras de los principios tradicionales, comenzaron a exponer doctrinas como las del activismo de los jueces o de los deberes de colaboración de las partes con el órgano jurisdiccional, que en lo esencial significaban anteponer la búsqueda de la verdad real a la vigencia absoluta e incondicionada del principio dispositivo.
En ese marco progresista surge la elaboración doctrinal de las cargas probatorias dinámicas, que si bien no significa un aporte original, viene a difundir entre nosotros ideas que datan de bastante tiempo atrás, constituyendo un mérito indudable de los Profs. Peyrano y Chiappini la divulgación de la idea y su recepción por parte de la jurisprudencia.
Para sintetizar la elaboración en pocas ideas, puede decirse que:
a) Las partes carecen del derecho de permanecer ensimismadas en el proceso, escudándose en una cerrada negativa de las alegaciones de la contraria.
b) La carga de la prueba puede recaer en cabeza del actor o del demandado según fueren las circunstancias del caso y la situación procesal de las partes.
c) La doctrina de las cargas probatorias dinámicas consiste en imponer el peso de la prueba en cabeza de aquella parte que por su situación se halla en mejores condiciones de acercar prueba a la causa, sin importar si es actor o demandado.
d) La superioridad técnica, la situación de prevalencia o la mejor aptitud probatoria de una de las partes o la índole o complejidad del hecho a acreditar en la litis, generan el traslado de la carga probatoria hacia quién se halla en mejores condiciones de provar." (Disponível em: <http://www.eft.com.ar>)
           
    8 Outros Aspectos da Responsabilidade Civil    
Já num outro plano, a responsabilidade civil dos incapazes introduziu o novel código importante mudança. Vale lembrar que, na vigência do Código Beviláqua, os incapazes eram tidos como irresponsáveis, respondendo por seus atos danosos seus pais, tutores e curadores, nos moldes do revogado art. 1.521.
Com efeito, à luz do art. 156, Código de 1916, somente aos menores relativamente capazes (entre 16 e 21 anos) havia previsão de responsabilidade pessoal de seus atos ilícitos extracontratuais.
Deixando de lado aquilo que seria mais propriamente a seara da irresponsabilidade dos incapazes e, na senda da codificação européia, o art. 928 do Código Reale positivou o regime da responsabilidade subsidiária e eqüitativa dos incapazes, o que nas palavras de Facchini Neto tratou-se "de verdadeiro jus novum".
Aparenta-nos que o referido dispositivo terá pouca utilidade prática, tendo em vista que a responsabilidade do incapaz não perdeu o colorido da subsidiariedade, ainda mais se combinarmos o retromencionado dispositivo com o art. 933 do mesmo "codex".
Ressalte-se que o Código Civil de 1916 não se preocupou em sistematizar a matéria pertinente a responsabilidade civil, tratando do tema em reduzido número de artigos. De forma totalmente diversa, foi a matéria positivada pelo novel legislador que lhe atribuiu um título especial e autônomo, embora reproduzindo literalmente, em sua maioria, os dispositivos revogados.
       
    9 O Processo e os Direitos Fundamentais    
De há muito, vem o legislador pátrio, de forma gradativa, aparelhando o ordenamento jurídico com instrumentos capazes de conferir à tutela jurisdicional efetividade plena e factível, além de garantir uma maior participação das partes na relação jurídica processual, já que o procedimento de cognição plena e exauriente vem deixando de ser compatível com os anseios de uma sociedade que pugna por uma justiça célere e eficaz.
A fim de tornar concreto esse novo espírito, inseriu-se em nosso ordenamento jurídico várias mudanças, dentre elas o instituto da Tutela Antecipada, através da Lei nº 8.952, de 13 de dezembro de 1994.
Possibilita-se o julgamento do mérito da causa quando o tribunal reforma a sentença terminativa, através da Lei nº 10.352, de 26 de dezembro de 2001, que deu nova roupagem ao art. 515, § 3º, do Código de Processo Civil.
No ano seguinte, surge um novo arquétipo de Execução, qual seja, a Execução Específica, prevista nos arts. 461 e 461-A do Código de Processo Civil, com a redação dada pela Lei nº 10.444, de 7 de maio de 2002.
Mais recentemente, atribuiu-se uma nova sistemática ao Recurso de Agravo, Lei nº 11.187/05, a Liquidação e Execução de Sentença, Lei nº 11.232/05, surgem a Súmula "impeditiva de recursos", Lei nº 11.276/06, o julgamento de "processos repetitivos" e finalmente o reconhecimento de ofício da incompetência relativa e da prescrição, Lei nº 11.280/06.
Com efeito, o motivo que levou o legislador a programar essa nova ordem processual civil foi, sem sombra de dúvidas, a necessidade de resgatar a idéia de que o processo consubstancia-se no único meio legítimo que o Estado possui para difundir na sociedade decisões legítimas.
Sem, contudo, perder de mira o fato de que referidas decisões devem, por sua vez, subsumir-se aos direitos fundamentais, gerando com isso o sentimento de justa satisfação do conflito de interesses.
Neste aspecto, impõe-se ressaltar a lição de Luiz Guilherme Marinoni:
"O processo não pode ser alheio ao seu produto, isto é, à liberdade da decisão. O processo deve produzir decisões legítimas, ou seja, decisões adequadas aos direitos fundamentais. Nem se diga que o processo apenas prepara a decisão, e por isso nada tem a ver com sua legitimidade. Essa forma de pensar faria com que a legitimidade da decisão fosse absorvida pela legitimação da jurisdição pelo procedimento, na linha de Luhmann. Ao se admitir essa última idéia, não importa a legitimidade da decisão, mas apenas a legitimidade do procedimento, uma vez que apenas essa seria suficiente para legitimar a decisão. Porém, não basta um procedimento legítimo. No Estado constitucional, a jurisdição realiza os seus fins apenas quando a lei é aplicada na dimensão dos direitos fundamentais.
Exatamente porque o processo deve ser visto em uma dimensão externa, de atuação dos fins do Estado, é que ele deve se desenvolver de modo a propiciar a efetiva participação das partes. Um procedimento que não permite efetiva participação das partes não tem qualquer condição de legitimar o exercício da jurisdição e a realização de seus fins. Na verdade, um procedimento incapaz de atender ao direito de participação daqueles que são atingidos pelos efeitos da decisão está longe de espelhar a idéia de democracia, pressuposto indispensável para legitimidade do poder.
O procedimento, visto como garantia de participação das partes, relaciona-se com o 'devido processo legal' (em sentido processual). Somente é o 'devido processo legal' o procedimento que obedece aos direitos fundamentais processuais ou às garantias de justiça processual insculpidas na Constituição, tais como o contraditório, a imparcialidade do juiz, a publicidade e a motivação. A observância do 'devido processo legal' legitima o exercício da jurisdição e, de outro ângulo, constitui garantias das partes diante do poder estatal.
(...)
Além disso, o procedimento deve ser capaz de permitir o acesso do mais pobre ao Poder Judiciário, tendo importância para viabilizar a universalidade de acesso à justiça. Daí a importância, mais uma vez, da diferenciação dos procedimentos. O procedimento não deve se diferenciar apenas para atender às diferentes necessidades de tutela dos direitos, mas também para permitir o acesso das populações economicamente menos privilegiadas ao Poder Judiciário. Um processo que não garante a todos, independentemente das suas posições financeiras, o acesso à justiça possui um déficit de legitimidade." (Marinoni, 2006, p. 453)
A idéia de que o acesso à justiça é um dos, senão o mais relevante, dos direitos fundamentais, deve vincular-se àquela do direito fundamental a uma tutela jurisdicional plena e efetiva, o que implica em oferecer aos cidadãos o direito à técnica processual adequada à tutela do direito material, ao mesmo tempo em que impõe ao juiz o dever de obediência à regra processual.
Neste aspecto, uma vez mais, se faz necessário reproduzir-se o pensamento de Marinoni:
"É por isso que o direito de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF) incide sobre o legislador - que resta obrigado a traçar 'formas de justiça' (órgãos jurisdicionais diferenciados) e procedimentos diferenciados para permitir o efetivo acesso ao Poder Judiciário das camadas da população economicamente menos favorecidas - e sobre o juiz, atribuindo-lhe o dever de compreender as regras processuais à luz do direito ao acesso à justiça." (ob. cit., p. 463)
Deste modo, tem-se que as reformas processuais operacionalizadas pelo legislador não tiveram outra senda, senão a de adequar o velho Código de Processo Civil aos novos tempos, às novas necessidades de uma sociedade que migra do moderno para o pós-moderno, exigindo para a solução de seus conflitos procedimentos menos formais e mais efetivos.
Com efeito, na visão obtusa dos formalistas, a questão envolvendo o perigo da irreversibilidade do provimento antecipatório nas ocasiões em que confrontado com os princípios constitucionais por certo se afiguraria num óbice a esta nova sistemática processual.
Não é preciso esforço para se resolver essa questão.
Nestes casos, deve o juiz identificar o interesse mais relevante e, valendo-se do princípio da proporcionalidade, decidir a favor do direito que se mostrar mais provável.
Aliás, esta é a posição de Ovídio Baptista:
"(...) casos há, de urgência urgentíssima, em que o julgador é posto ante a alternativa entre prover ou perecer o direito que, no momento, apresente-se apenas como provável, ou confrontado com prova de simples verossimilhança. Em tais casos, se o índice de plausibilidade do direito for suficientemente consistente aos olhos do julgador - entre permitir sua irremediável destruição ou tutelá-lo, como simples aparência -, esta última solução torna-se perfeitamente legítima. O que, em tais casos especialíssimos, não se mostrará legítimo será o Estado recusar-se a tutelar o direito verossímil, sujeitando seu titular a percorrer as agruras do procedimento ordinário, para depois, na sentença final, reconhecer a existência apenas teórica de um direito definitivamente destruído pela sua completa inocuidade prática."
Ressalte-se que não se pretende com este singelo estudo aprofundar-se nas críticas de Jürgen Habermas, no sentido de que a utilização da regra da ponderação, quando da aplicação dos direitos fundamentais, leva à arbitrariedade, diante da ausência de critérios racionais.
Outro exemplo de outorga pelo legislador, de poder ao juiz, a fim de que este torne efetivo o direito de ação, vem previsto no § 5º do art. 461 do CPC que diz:
"Para a efetivação da tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como (...)."
É possível que se diga ainda que essa nova sistemática processual venha restringir o contraditório e a ampla defesa, assegurados constitucionalmente no art. 5º, inciso LV, da CF, onde se lê:
"Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes."
Na discussão do problema, impõe-se uma interpretação racional da palavra "ampla", inserida na norma constitucional a fim de adjetivar a defesa, neste aspecto irrepreensível, uma vez mais a lição de Marinoni:
"Ter ampla defesa não é, evidentemente, possuir uma possibilidade de defesa que supere o limite da dimensão de participação que se deve dar ao réu para que ele possa efetivamente influir sobre o juízo e evitar que a sua esfera jurídica seja invadida de forma não adequada ou necessária. Por ampla defesa deve se entender o conteúdo de defesa necessário para que o réu possa se opor à pretensão de tutela do direito (à sentença de procedência) e à utilização de meio executivo inadequado ou excessivamente gravoso." (ob. cit., p. 313)
Para Marinoni, por exemplo, o § 5º do art. 461 "representa uma expressa opção pela efetividade do direito de ação diante da segurança jurídica e, em determinada perspectiva, do direito de defesa" (ob. cit., p. 341).
Destarte, concluindo este tópico, inegável que o "novo" processo civil brasileiro, hodiernamente, encontra-se armado para atender aos reclamos e anseios da sociedade na solução de seus conflitos de interesses.
       
    10 Da Responsabilidade Subjetiva do Juiz, em Face da Demora da Prestação da Tutela Jurisdicional    
Fixada a relação existente entre processo e direitos fundamentais, sob a ótica da exigência e concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, diante da nova sistemática processual implantada, cujo fim precípuo é tornar factível a prestação da tutela jurisdicional, cujo monopólio pertence ao Estado.
E a submetendo à nova disposição da responsabilidade civil no Código Civil de 2002, torna-se perfeitamente possível responsabilizar subjetivamente o agente encarregado de prestá-la, quando sua inércia der causa ao perecimento do direito deduzido em juízo.
Não se pode perder de mira que, hodiernamente, nosso sistema processual encontra-se aparelhado justamente para superar este estado de coisas, que de há muito provocavam o descontentamento social, desencorajavam a utilização da via judicial para a solução de conflitos de interesses e principalmente o descrédito do Poder Judiciário, fazendo-se sentir, nos vários setores da sociedade, o amargo sabor da impunidade.
Destarte, a lição de Dergint:
"A demora no andamento de processo sucede em virtude de mau aparelhamento do serviço judiciário ou por desídia do magistrado, senão pela não rara conjugação de ambos os fatores. Ou o juiz age culposamente, por desídia, ou, fazendo tudo quanto pode humanamente fazer, não vence a passividade do Estado em remover os obstáculos à pontual prestação da tutela jurisdicional." (1994, p. 196)
Deve ser lida com outros olhos, ou seja, com a cautela imposta pela nova ordem processual civil, por disponibilizar esta ao juiz ferramentas necessárias para "remover os obstáculos" impeditivos ao efetivo exercício da tutela jurisdicional.
Neste contexto, costuma apontar-se corretamente para a circunstância de que a não prestação da tutela jurisdicional consubstancia-se numa anomalia, devendo ser encarada desta mesma forma, hoje em dia, a demora na prestação da referida tutela.
Daí poder-se afirmar, sem sombra de dúvidas, que se a prestação da tutela jurisdicional se tornar inócua em razão da demora injustificada do magistrado, em que pesem os vários institutos a ele disponibilizados, tem-se como indelével conseqüência seu dever de responder pelos danos que causar à parte, em razão de seu descaso ao lidar com o conflito de interesses deduzido em juízo.
Ainda mais se tivermos em mente que a atividade judiciária deve ser vista como um serviço público, definido por Di Pietro como:
"(...) toda a atividade material que a lei atribui ao Estado para que exerça diretamente ou por meio dos seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob o regime jurídico total ou parcialmente público." (2002, p. 99)
Meirelles expõe o conceito de serviço público como sendo:
"(...) todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer as necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniência do Estado." (2003, p. 319)
Deste modo, impossível deixar de se reconhecer que o exercício da jurisdição enquadra-se no conceito de serviço público, inquestionável será a condição de agente público do magistrado, para tanto confira-se a definição de Meirelles:
"Agentes Públicos são todas as pessoas incumbidas, definitiva ou transitoriamente, do exercício de alguma função estatal." (ob. cit., p. 73)
Frente à nova sistemática processual, ao magistrado não mais incumbe a singela prática de por meios dos atos judiciais conduzir pacificamente o processo à sentença de mérito. Não mais se admite a prática, por parte do juiz, dessa abominável conduta a frente do processo, pois os atos judiciais devem agora consubstanciar-se, em sua maioria, na busca da tutela efetiva.
Outro ponto que permite pensar dessa maneira é o de que o Código de Processo Civil estabelece prazos para a realização dos atos processuais, sendo certo ainda que a delimitação do tempo para a realização de referidos atos decorre do princípio da legalidade, hodiernamente encartado na condição de direitos e garantias individuais.
Ora, por que charadística razão o legislador imporia somente às partes o ônus de cumpri-los e o facultaria a um seu servidor?
A esta altura, a lição de Arnaldo Marmitt é precisa ao afirmar:
"A vítima não é obrigada a endereçar sua ação contra o poder público, mas, ao dirigir diretamente contra o servidor, deve comprovar a culpa ou o dolo, vez que a responsabilidade objetiva só condiz com o poder público." (1987, p. 240)
Adilson Dallari sustenta:
"(...) se o administrado quiser, poderá apenas e tão-somente acionar o funcionário, assinalando que, neste caso, a vítima teria o inconveniente de ter de provar a culpa do funcionário, mas em compensação se livraria das notórias dificuldades da execução contra a Fazenda Pública: o particular tem o ônus da prova, mas vê facilitada a execução da sentença judicial." (p. 122-123)
       
    11 Conclusão    
Vê-se, pois, a inexistência de qualquer impedimento legal para responsabilizar, subjetivamente, o juiz pela sua desídia na condução do processo, bastando, para tanto, romper-se com essa subserviência quase que mitológica, por parte daqueles que necessitam da tutela jurisdicional diante daqueles que prestam à tutela jurisdicional.
A razão para quebra deste suposto paradigma é muito simples, a jurisdição é um serviço público disponibilizado pelo Estado aos seus cidadãos, que tem como finalidade resguardar seu direito fundamental.
Com isso, devemos expurgar de nossos pensamentos argumentos como: o juiz está sobrecarregado, falta de magistrados, a estrutura do Poder Judiciário é precária. Ressalte-se ainda que, em persistindo estas situações fáticas, não pode o magistrado delas se servir a fim de justificar a demora, por exemplo, para apreciar um pedido de tutela antecipada. Diante da nova sistemática processual em vigor, tem-se como inadmissível.
Porém, se os aplicadores do direito não forem capazes de se sensibilizarem, adequando-se a esta nova concepção de processo, ao revés, insistindo como diuturnamente o fazem numa cognição exauriente, para o deslinde da lide, estar-se-ia girando a manivela da história ao contrário.
   
    12 Referências Bibliográficas    
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SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado.
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