Crimes Informáticos: da Tipificação Existente aos Cuidados para Impedir a Censura à Livre Comunicação Humana

Adel El Tasse

Advogado; Procurador Federal; Mestre e Doutorando
em Direito Penal; Professor; Integrante da Coordenadoria
do Paraná da Associação Brasileira dos Professores de
Ciências Penais.
   
RESUMO: É inegável a capacidade de emprego dos recursos informáticos para a prática dos mais variados delitos, como o estelionato, a pedofilia, o dano, as lesões à honra, as invasões da liberdade e até mesmo para crimes clássicos como o homicídio. A maioria das situações apontadas como delineadores de uma nova criminalidade, que demandaria a edição de legislação específica, diz respeito a delitos já tipificados pelo sistema jurídico-penal. De qualquer sorte, a doutrina penal não poderia deixar de se preocupar com as conexões entre a informática e o sistema criminal, ganhando espaço diferentes posturas teóricas em torno da matéria, posturas estas que desaguaram na elaboração de classificações próprias para os delitos perpetrados com a utilização dos recursos informáticos.
   
    1 A Informática e o Direito Penal    
A transformação gerada pelo avanço tecnológico nas sociedades contemporâneas repercute, de forma impossível de ser ignorada, nas atividades diárias e na comunicação, assim como os recursos tecnológicos passam a ser muitas vezes empregados com a deliberada intenção de produzir ofensa a bens jurídicos relevantes.
Desde a inicial constatação de que a informática poderia se constituir em instrumental produtor dessa ofensa, surgiram teses e diferentes linhas argumentativas a debater a necessidade de oferta de tratamento específico pelo Direito Penal à matéria.
Já ao início, convém observar que é inegável a capacidade de emprego dos recursos informáticos para a prática dos mais variados delitos, como o estelionato, a pedofilia, o dano, as lesões à honra, as invasões da liberdade, conseguindo conceber-se sua utilização até mesmo para crimes clássicos como o homicídio.
Nesse sentido, o exemplo formulado por Sandra Gouvêa, em que "uma pessoa invade o sistema de computadores de um hospital, onde os remédios a serem ministrados aos pacientes são arquivados em computador, e modifica as receitas. A enfermeira vai obedecer à instrução do computador sem saber que ela foi alterada" , é bastante ilustrativo.
Tomando o exemplo acima, constata-se, porém, claramente que o recurso informático foi o meio essencial para a prática delitiva, que segue sendo o mesmo delito de homicídio já descrito desde as primeiras tipificações penais da história jurídica.
Com isso, o que se quer demonstrar é que a grande maioria das situações apontadas como delineadores de uma nova criminalidade, que demandaria a edição de legislação específica, dizem respeito a delitos já tipificados; em sua grande maioria, crimes de tradicional definição pelo sistema jurídico-penal.
A grande escala da dita "nova criminalidade informática" representa o cometimento dos mesmos crimes de outrora, apenas valendo-se de recursos tecnológicos mais atuais.
Aliás, não é esta a primeira vez que a modernização dos mecanismos de ação criminal faz com que os juristas se deparem com clamor social calcado na falha ideia de que há uma nova criminalidade acometendo a sociedade.
Por exemplo, rumorosos crimes de extorsão mediante sequestro, em meados dos anos 1980 e início dos 1990, geraram a sensação nas pessoas de que um novo modelo de delitos estava surgindo, quando, em verdade, nada há de diferente nesta prática, para com os sequestros para recebimento de resgate, praticados há séculos pelos piratas. Nos grandes centros urbanos, as pessoas sentem-se intimidadas por assaltos praticados contra motoristas e passageiros de veículos, nos sinaleiros e nos congestionamentos e referem-se a esses como se algo novo fossem, esquecendo que já na antiguidade caravanas eram assaltadas, depois os trens eram assaltados e assim seguiu, primeiro roubando quem se deslocava a cavalo ou a camelo, porque o automóvel ainda não tinha sido inventado, passando pelos diferentes meios de transporte que a mente humana foi capaz de conceber, até atingir os atuais veículos.
A informática não vive nenhuma realidade diversa. Os delitos com ela praticados não apresentam características particulares que lhe forneçam um caráter inovador, embora o método que se empregue o possa ser. São os mesmos crimes de sempre, apenas cometidos com os recursos tecnológicos mais modernos de que a humanidade hoje dispõe.
Assim como a sociedade tida como regular continuamente tenta aprimorar sua qualidade de vida com a obtenção de meios tecnológicos sempre mais avançados, o mundo criminal também atua na busca de mecanismos que torne mais fácil a ação delitiva, garantindo maior segurança operacional ao seu autor, o que é muito diferente de se dizer que os avanços fazem surgir uma nova criminalidade.
De qualquer sorte, a doutrina penal não poderia deixar de se preocupar com as conexões entre a informática e o sistema criminal, ganhando espaço diferentes posturas teóricas em torno da matéria, posturas estas que desaguaram, entre outros pontos não relevantes para o presente texto, na elaboração de classificações próprias para os delitos perpetrados com a utilização dos recursos informáticos.
   
    2 Classificação dos Crimes Informáticos    
Há várias propostas de classificação dos crimes informáticos, algumas que chegam a cometer equívocos manifestos sob o ponto de vista da dogmática penal e outras que exageram nas subdivisões, criando um emaranhado ininteligível de possibilidades.
A classificação desenvolvida por Herzé Croze e Yves Bismuth é hoje a mais aceita quando se fala dos crimes informáticos, devendo-se reconhecer que é a que apresenta alguma possibilidade de impedir o excesso legislativo na matéria que somente serviria a produzir o crescimento da intervenção nas liberdades, com o desenvolvimento de bloqueio ao fluxo de informações atualmente garantido.
A proposta é, em síntese, a da existência de dois campos: 1) crimes cometidos utilizando-se dos recursos informáticos como instrumentais, em que a conduta já se encontra descrita nos tradicionais tipos penais e apenas passaram a ter a possibilidade de uma forma de atuação específica pelo emprego dos recursos informáticos; 2) condutas de ofensa ao sistema informático que podem atingir material, suportes lógicos ou dados do computador.
A classificação acima tem o claro mérito de não estender demasiadamente os níveis de intervenção possíveis pelo Estado, uma vez que não se geram novos campos criminais a impor limitação nas liberdades, pois, de um lado, estão os crimes já existentes e que são tão somente objeto de cometimento com a utilização dos recursos informáticos, os quais se pode denominar delitos ou crimes impropriamente informáticos; e de outro, os crimes praticados contra os recursos informáticos, passíveis da categoria de crimes propriamente informáticos, mas que, em verdade, não são mais que uma modalidade especial de dano.
Quanto aos últimos acima mencionados, o fato de não se constituírem em mais que uma categoria especial de dano, em análise rigorosa, torna discutível a necessidade de tipificação, o que somente seria plausível se com o objetivo de atender ao aspecto de segurança que a descrição formal da figura delitiva possui, impedindo que a dificuldade na compreensão dos conceitos próprios da informática alargue em demasia a incidência do tipo geral do dano, ou seja, não é possível ampliarem-se as possibilidades punitivas, mas a tipificação específica, se existente, deve tornar claros os conceitos técnicos próprios, a fim de limitá-la.
Em outras palavras, ao observar um detalhamento particular na situação, com linhas e linguagem muito próprias, sem em verdade criar nenhum delito, mas meramente detalhando conceitos, é admissível, somente nesta hipótese, a elaboração de tipificação específica a fim de tornar claros os limites delitivos, vedando ao Estado ações persecutórias e punitivas relacionadas às variadas questões informáticas, a pretexto de sancionar o crime de dano, aproveitando a dificuldade cognitiva decorrente dos símbolos de comunicação próprios.
Dessa forma, a matéria penal em torno dos delitos informáticos jamais pode admitir conteúdo que possa ampliar campos de permissão punitiva, o que seria a gênese de censura, em especial, à grande rede (Internet), ressalte-se, espaço de maior liberdade na troca de informações e opiniões que a humanidade já experimentou.
Claro que o uso dos recursos tecnológicos para o cometimento de outros crimes dotados de potencial ofensivo elevado, como o caso da pedofilia, devem ser objeto de enfrentamento, porém, isso não significa dizer que devem ser admitidas exceções à plenitude de comunicação que a informática permite, pois das exceções limitativas surgem as regras e, seguramente, a pretexto de combate a situações delitivas graves pretende-se controlar as informações que hoje circulam, graças aos recursos de informática, livremente, por todo o planeta, sem qualquer censura.
Acresce observar que o enfrentamento de situações em especial graves, como a citada pedofilia, não depende da limitação da informação, mas do equacionamento dos campos de conflito social que a geram e ataque direto a eles.

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