Heloisa Helena Barboza
Professora Titular da Faculdade de Direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ;
Professora do Mestrado da Faculdade de Direito de Campos - FDC.
SUMÁRIO: 1 As Relações Fundadas no Afeto: Reconhecimento Jurídico; 2 Parentesco; 3 A Socioafetividade como Critério de Parentesco; 4 Efeitos Jurídicos do Parentesco Socioafetivo. Referências Bibliográficas.
A Constituição da República de 1988 promoveu profundas alterações no Direito de Família, não só para harmonizá-lo com os valores ali consagrados, como também para concluir e sedimentar o processo de recepção da realidade social pelo ordenamento. As diretrizes jurídicas que regem as relações familiares foram constitucionalmente estabelecidas, dentre as quais se destacam os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. A família, até então sinônimo de casamento, passou por sensíveis modificações em sua vocação e forma de constituição, em razão de fatores econômicos e sociais, aos quais se agregaram os efeitos da biotecnociência. Novos arranjos familiares surgiram, desafiando a ordem jurídica. O afeto ganhou relevância perante o Direito, gerando vínculos, direitos e obrigações na órbita familiar.
Nessa pauta de "inovações", doutrinadores e tribunais passaram a referir-se à socioafetividade, especialmente nos conflitos sobre paternidade. A matéria, contudo, não se encontra pacificada e não estão consolidados o conceito e efeitos jurídicos da socioafetividade como critério de parentesco, os quais devem ser construídos à luz dos princípios constitucionais. Indispensável sejam ponderados os interesses de todos os envolvidos, e que a análise da questão considere não só os laços afetivos, mas, principalmente, as repercussões sociais (sócio) geradas por esses laços (afetividade).
1 As Relações Fundadas no Afeto: Reconhecimento Jurídico
Tão importante quanto as prescrições legais, os vínculos afetivos e os papéis sociais por eles gerados passaram a ser reconhecidos pelo direito, de que é exemplo cabal a união estável. Gerada por laços afetivos, a união entre homem e mulher sem casamento chegou a ser considerada imoral no início do século passado, e só após décadas de batalhas judiciais foi reconhecida como entidade familiar, passando pelo concubinato, pelo companheirismo e chegando finalmente à união estável.
Mas não só o afeto gerou a legitimação das uniões livres. A situação social do casal, agindo e sendo reconhecido como "marido e mulher", certamente mais do que o afeto, foi decisivo para tanto. Voltada inicialmente para a proteção da mulher, a admissão dessas uniões, para fins de produção de efeitos jurídicos, exigia o atendimento de três requisitos: a reputatio, nominatio e tractatus, ou seja, a companheira devia ter o trato, o nome e a fama de esposa, sendo o casal tido como tal pelos amigos e pela sociedade .
A partir de 1988, nos termos da Constituição, a união estável entre homem e mulher foi reconhecida como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. A parte final do dispositivo constitucional (art. 226, § 3º) tem gerado polêmica quanto à prevalência do casamento como modelo de família. De acordo com o Código Civil, a união estável configura-se na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família (art. 1.723).
Três aspectos merecem destaque nesse processo de legitimação das uniões sem casamento, no que respeita à produção de efeitos jurídicos, e que interessam diretamente ao presente trabalho. O primeiro diz respeito à prevalência da natureza "familiar" sobre a "societária". Os efeitos patrimoniais, ora decorrentes da união estável, encontram fundamento no princípio da solidariedade e na autonomia da vontade, suplementada pela lei, não mais se exigindo a comprovação de uma sociedade de fato para a partilha do patrimônio comum. O segundo é o locus da configuração da união estável.
Embora seja, por natureza, uma relação privada, é necessário que se exteriorize como vida familiar, que a convivência seja pública. Não basta que a união seja contínua e duradoura, é preciso ser socialmente tida e havida como uma família. O terceiro aspecto, não menos importante, é sua natureza jurídica: a união estável sempre foi, e continua sendo, um fato. Não tendo qualquer prova pré-constituída, como o casamento, sua existência se evidencia na vida de relação, no contato social, ou, como quer o Código Civil, na "convivência pública". A produção dos efeitos prescritos pela lei depende do reconhecimento judicial dessa convivência, do vínculo - socioafetivo - que ali se construiu.
Outras situações de fato, de natureza familiar, igualmente geradas pelo afeto, são de há muito acolhidas pelo direito, sob a denominação de "posse do estado de casado" e "posse do estado de filho". Construída sob o império do casamento, então única forma "legítima" de família e de "legitimação" dos filhos, a noção de posse vem sendo reinterpretada à luz das diretrizes constitucionais. Como observa Caio Mário da Silva Pereira, a lei não esclarece em que consiste a posse de estado, concebendo a doutrina tal estado de fato, em paralelo à posse das coisas, como um estado de direito, uma vez caracterizada pela nominatio, tractatus e reputatio.
A posse do estado de casado era ao tempo do Código Civil de 1916 (art. 203) "a melhor prova" de confirmação da existência do casamento, embora não bastante. Caracterizada pela nominatio, tractatus e reputatio, supria a falta do registro do casamento, com o propósito de beneficiar os filhos comuns, que só eram legítimos, vale dizer, somente teriam o estado de filhos com os direitos que lhe são próprios, se casados os pais. Indispensável, porém, fossem atendidos os requisitos legais: que os pais estivessem mortos, que tivessem vivido na posse do estado de casados e que os filhos provassem tal qualidade, nem sempre fácil antes do advento do exame de DNA. O vigente Código Civil manteve a orientação anterior, incluindo, além das pessoas falecidas, as que não possam manifestar vontade.
A prova do casamento dos pais importa atualmente apenas para fins de presunção da paternidade, suprindo ou complementando a prova da filiação, em razão do princípio constitucional da igualdade dos filhos. Embora não prevista em lei, mas originalmente com o mesmo propósito de suprir a falta ou o defeito do assento de nascimento, a posse do estado de filho, admitida pela doutrina, constitui-se "por um conjunto de circunstâncias capazes de exteriorizar a condição de filho legítimo do casal que o cria e educa".
Além de caracterizar-se igualmente pela nominatio (ter o nome dos pais), tractatus (ser continuamente tratado como filho legítimo) e fama (ser constantemente reconhecido, pelos pais e pela sociedade, como filho legítimo), deviam os pais ser casados ou terem vivido na posse do estado de casado, pressuposto para a legitimidade dos filhos.
Não mais se cogita sobre a legitimidade, mas a posse do estado de filho, como sob outra ótica preconizava Orlando Gomes, deve ser considerada "excelente prova" da filiação (não mais legítima), "porque constitui um reconhecimento contínuo, perseverante, quotidiano, público e notório da filiação", que por tais qualidades só pode se construir tendo por base o afeto. Segundo o autor, possuir o estado de filho é ser tratado como tal. Esta afirmativa hoje é de todo válida como prova bastante da filiação, presentes as características mencionadas, independentemente da situação jurídica dos pais, uma vez que não mais cabe exigir seu casamento, especialmente em face do disposto no art. 229 da Constituição da República.
Constata-se que não é recente a legitimação de determinados fatos como situação jurídica geradora de direitos e deveres, não só no campo do direito de família, como no das obrigações e no do direito das coisas. Em cada caso haverá efeitos jurídicos próprios de natureza pessoal e patrimonial, respectivamente. Observe-se, especialmente no caso das relações familiares, a importância das repercussões sociais para que ocorra o reconhecimento jurídico da situação de fato existente.
A produção de efeitos dependerá de sentença que confere efeito de direito ao fato, autorizando os envolvidos a desfrutar as vantagens e a suportar encargos pertinentes.
O vínculo que surge entre pessoas que convivem como se fossem pais e filhos se inclui nas relações de fato fundadas no afeto aptas a serem juridicamente reconhecidas. O estudo da questão deve levar em conta: (a) o importante papel que o afeto tem nas relações familiares, especialmente na construção de vínculos como o do casamento, da união estável e do parentesco; (b) a expansão do afeto, surgido no espaço eminentemente privado, para o espaço público, assumindo as pessoas funções sociais que autorizam o reconhecimento jurídico das relações assim criadas; (c) a consequente permanência dos efeitos jurídicos dos vínculos gerados pelo exercício dessas funções, atendidos determinados requisitos, ainda que findo o afeto que os originou.
Tais aspectos devem ser considerados, visto que as relações familiares verdadeiras são afetivas, embora muitas relações familiares jurídicas não o sejam. A verdadeira família é uma comunhão de afetos, antes de ser um instituto jurídico. A união estável, assim como a união homossexual, também denominada homoafetiva, tem sua origem e existência em função do afeto entre seus integrantes. O afeto é um sentimento que se traduz em fatos para o direito, fatos esses que se verificam na convivência social, originando a socioafetividade. Do mesmo modo que as mencionadas entidades familiares, o parentesco pode ser gerado apenas pela socioafetividade, que é um fato.
Esclarece Pietro Perlingieri que o termo "fato" tem mais de um significado: o "fato" objeto da ciência natural não é o mesmo objeto de uma ciência prática como o direito, para a qual fato é qualquer evento que evoque a ideia da convivência ou de relacionamento. Fato é o evento ou o estado valorado pela norma; o efeito é a consequência jurídica que se liga ao fato. O fato, no seu verificar-se, atua quando previsto na lei: o ordenamento lhe atribui uma qualificação e uma disciplina. Ter um estado é ter de fato o título correspondente, desfrutar as vantagens a ele ligadas e suportar seus encargos.
Para Orlando Gomes, a posse de estado é uma presunção juris tantum. Há uma crença de que os fatos produzem efetivamente e por eles mesmos efeitos jurídicos. Na verdade, a sucessão fato-efeito jurídico pode ser considerada verdadeiramente causal, porque ela é constante e necessária, mas uma análise mais atenta mostra suas anomalias. Estão ligados dois elementos de ordem diversa, na medida em que um realça a história e o outro a normatividade, ou seja, as representações intelectuais.
De acordo com Michel Virally, é necessária a intervenção de uma determinação exterior, sobreposta, conferindo efeito de direito ao fato, atribuindo-lhe o caráter de causa e pertencente ela mesma à ordem jurídica. Em uma palavra, a passagem do fato ao direito supõe a existência de uma regra jurídica, que representa a causa primeira, e o fato, ao qual se vinculam consequências jurídicas, que não é, senão, a segunda causa, e de qualquer modo ocasional.
Para o autor a apreensão do fato pelo direito se verifica de modo verbal, cabendo ao direito designar o fato ao qual atribui consequências jurídicas. O direito dispõe para tanto apenas de recursos de linguagem. Embora seja um fato simples, que se resume em nomear, muitas incertezas daí resultam, posto que em algumas hipóteses não há acordo sobre as definições, e em outras a regra deverá recorrer a uma descrição abstrata, por vezes vaga, que levanta dificuldades e contestações na aplicação ao caso concreto. Além disso, os fatos para penetrarem no direito devem ser conceituados, operação que também comporta controvérsias, embora a conceituação do fato não altere a natureza, havendo apenas a submissão do fato a um tratamento intelectual.
O direito se interessa, portanto, mais por sua própria criação, por aquilo que ele agregou, do que pela realidade objetiva. Isto gera um risco de deformação e desconhecimento do real, preocupando-se o jurista, por vezes, mais com detalhes que lhe parecem importantes e lhe permitem, enfim, citar um artigo do Código. Sobre este aspecto, faz Michel Virally interessante observação: segundo o autor, o direito dá mais importância aos modos de constatação dos fatos, do que aos fatos propriamente ditos, o que pode conduzir ao absurdo. Assim aquele que, por um erro material, foi registrado com um sexo oposto ao seu ou foi declarado morto, terá que provocar uma decisão judicial para ser reconhecido como indivíduo do sexo masculino ou para impedir a abertura de sua sucessão. Sem a intervenção judicial, o direito o considerará como mulher ou morto. Chega-se ao limite de não haver qualquer relação entre a verdade dos fatos e sua significação jurídica.
No momento em que se tem como diretrizes a proteção da pessoa humana, em sua dignidade, e a solidariedade, impõe-se rejeitar, principalmente em matéria de família, qualquer afastamento entre a verdade dos fatos e sua significação jurídica. A relação familiar, em especial a de filiação, é gerada pelo afeto e construída tanto no espaço privado, quanto público, sendo, por natureza, socioafetiva.
2 Parentesco
O Código Civil, oriundo de projeto anterior à Constituição, na tentativa de "adaptar-se" a tais diretrizes, acabou por instaurar diversas dúvidas, muitas das quais ainda não respondidas. Nessa linha de indagações inscreve-se o parentesco, vínculo de fortes repercussões pessoais e patrimoniais, que se constitui no seio das famílias reconhecidas e dos novos arranjos familiares, de que são exemplo as uniões homoafetivas, os quais desafiam a ordem jurídica ao exigir o reconhecimento dos direitos das pessoas que as integram.
De acordo com o Código Civil, o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem (art. 1.593), e se estrutura em linhase graus, nos termos ali estabelecidos (arts. 1.591, 1.592, 1.594 e 1.595). A doutrina e a jurisprudência atuais entendem que o parentesco "natural", resultante da consanguinidade, é o parentesco biológico ou genético, e o "civil", resultante de "outra origem", é o socioafetivo, compreendendo a adoção e a filiação oriunda das técnicas de reprodução assistida heterólogas, vale dizer, naquelas em que haja participação de doador de material fecundante estranho ao casal. O parentesco civil constitui uma ficção jurídica, na medida em que é criado pela lei.
Seu estabelecimento se dá por força da presunção legal de paternidade, do reconhecimento voluntário ou mediante sentença, nos casos de adoção ou reconhecimento judicial. A aplicação dessa norma deverá sempre atender os princípios constitucionais, especialmente no caso os princípios do melhor interesse da criança e da paternidade responsável.
Já se afirmou como verdade incontestável que o parentesco deriva sempre da filiação. Efetivamente é o que se constata: para fim de determinação da linha ou do grau do parentesco, tomar-se-á sempre como referência uma determinada relação de ascendência e descendência, vale dizer, de filiação. Na verdade, para todos os fins jurídicos, o parentesco é fixado em lei que prevê, como referido, diferentes critérios para seu estabelecimento.
Embora haja constante menção à paternidade ou maternidade socioafetiva, impõe-se ressaltar que, uma vez criado o vínculo de filiação, igualmente instauradas estarão todas as linhas e graus do parentesco, passando a produzir todos os efeitos jurídicos pessoais e patrimoniais pertinentes. Em consequência, o eventual reconhecimento judicial de determinada relação de parentesco, como a existente entre dois irmãos, ou entre tio e sobrinho, com fundamento genético ou socioafetivo, implicará, necessariamente na vinculação de outras pessoas, que fazem parte da cadeia familiar, visto que há de se remontar ao ancestral ou tronco comum. Em outras palavras, os irmãos terão pelo menos um ascendente comum, pai ou mãe. Do mesmo modo, o tio e o sobrinho, pelo menos por uma linha de ascendência, paterna ou materna, terão um ancestral comum (pai do tio e avô do sobrinho).
O reconhecimento isolado de determinada relação de parentesco, como a de filiação que não alcance os demais parentes, ou mesmo de parentesco na linha colateral, à semelhança do previsto no art. 376 do Código Civil de 1916, não parece encontrar amparo legal. Ao contrário, afronta o princípio da plena igualdade entre os filhos que iniciam ou são atingidos pela cadeia familiar.
3 A Socioafetividade como Critério de Parentesco
O afeto não tem aceitação pacífica como elemento que legitime o reconhecimento jurídico do vínculo socioafetivo. Tal rejeição, em geral, se dá pela natural instabilidade das relações afetivas: findo o afeto, seria questionável o fundamento para a manutenção dos efeitos jurídicos. Não obstante alguns tribunais têm feito prevalecer o vínculo socioafetivo sobre o biológico. Este entendimento só considera, ou privilegia, o componente afetivo do vínculo, preterindo os efeitos sociais, por vezes irreversíveis, que a convivência gera.
A socioafetividade, como acima referido, é um critério para estabelecimento de relações familiares geradas pelo afeto, que se exterioriza na vida social. É um fato a ser apreendido pelo direito. Seu reconhecimento por sentença é condição para sua eficácia jurídica.
Para tanto deve ser provada a existência dos elementos que a compõe: o externo (o reconhecimento social) e o interno (a afetividade). O elemento externo traduz o interno, podendo ser identificado objetivamente, mediante a aferição dos requisitos típicos das relações fundadas no afeto: tractatio, reputatio e nominatio. Acresça-se o cuidado dedicado ao parente socioafetivo, passível de verificação objetiva, como uma das melhores formas de expressão do afeto.
A posse do estado de filho, interpretada de acordo com as diretrizes constitucionais, é prova bastante para fins de declaração da filiação, gerando o parentesco "outra origem", segundo o critério da socioafetividade. À semelhança do que acontece com a declaração da paternidade segundo o critério biológico ou genético, os parentes do pai socioafetivo, assim reconhecido por sentença, tornam-se parentes do filho socioafetivo, nos limites da lei, sob pena de afronta ao princípio constitucional da igualdade entre os filhos.
O reconhecimento do vínculo de filiação socioafetiva, gerando o parentesco socioafetivo para todos os fins de direito, nos limites da lei civil, se legitima no interesse do filho. Se menor, com fundamento no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente; se maior, por força do princípio da dignidade da pessoa humana, que não admite um parentesco restrito ou de "segunda classe". O princípio da solidariedade se aplica a ambos os casos, eis que fundamento do vínculo de parentesco, qualquer que seja o critério adotado. Eventuais limitações do parentesco dependem de lei, que deve harmonizar-se com as diretrizes constitucionais.
Pelos mesmos motivos acima, o critério da socioafetividade deve prevalecer na hipótese de confronto com o biológico. Uma vez reconhecido por sentença o parentesco socioafetivo, seus efeitos permanecem indefinidamente, à evidência ressalvada a desconstituição judicial do vínculo. Observe-se que, mesmo que cessado o afeto que o originou, suas repercussões sociais se mantêm, podendo sua eventual reversão causar danos morais, se não patrimoniais, aos envolvidos. Cite-se como exemplo a alteração do nome, que pode comprometer irreversivelmente a identidade da pessoa.
O parentesco socioafetivo, em regra, decorre do reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva, gerando todos os efeitos pessoais e patrimoniais que lhe são inerentes. Não se deve afastar a possibilidade de seu reconhecimento em outra linha ou grau, como a colateral de segundo grau (irmãos). Em tal caso, como antes observado, haverá, necessariamente, a vinculação de outras pessoas, que fazem parte da cadeia familiar, visto que há de se remontar ao ancestral ou tronco comum. A questão merece maior aprofundamento, especialmente em razão dos princípios constitucionais envolvidos, mas escapa aos estreitos objetivos do presente trabalho.
4 Efeitos Jurídicos do Parentesco Socioafetivo
Para que se identifiquem os efeitos da socioafetividade é necessário determinar sua natureza jurídica e estabelecer seu conceito. A socioafetividade é um fato, onde se constatam dois aspectos (sócio + afetivo). Gerado pela afetividade, o vínculo se externa na vida social, à semelhança de outras relações fundadas no afeto, mediante (pelo menos) reputatio, nominatio e tractatus, que são seus requisitos e que permanecem, mesmo quando findo o afeto, porque construídos na convivência em sociedade. Presentes esses requisitos, a socioafetividade é um dos critérios para reconhecimento do vínculo de parentesco de outra origem, a que se refere o art. 1.593 do Código Civil.
Para que produza efeitos jurídicos, a socioafetividade deve ser reconhecida por sentença, uma vez feita a prova do afeto, sem dúvida de natureza subjetiva, e, necessariamente, dos efeitos sociais daí decorrentes, passíveis de aferição objetiva. A comprovação dos efeitos sociais autoriza a declaração do vínculo de parentesco, mesmo contra a vontade do pai (ou da mãe), que não tem mais afeto por aquele que, até então, fora seu filho.
O parentesco socioafetivo produz todos e os mesmos efeitos do parentesco natural. São efeitos pessoais: (a) a criação do vínculo de parentesco na linha reta e na colateral (até o 4º grau), permitindo a adoção do nome da família e gerando impedimentos na órbita civil, como os impedimentos para casamento, e pública, como os impedimentos para assunção de determinados cargos públicos; (b) a criação do vínculo de afinidade. Sob o aspecto patrimonial são gerados direitos (deveres) a alimentos e direitos sucessórios. O reconhecimento do parentesco com base na socioafetividade deve ser criterioso, uma vez que, como demonstrado, envolve terceiros, não necessariamente envolvidos na relação socioafetiva, mas que certamente serão alcançados pelo dever de solidariedade que é inerente às relações de parentesco.
Referências Bibliográficas
BENJÓ, Simão Isaac. União estável e seus efeitos econômicos em face da Constituição Federal. Revista Brasileira de Direito Comparado, v. II, 1991.
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo: uma espécie de família. São Paulo: RT, 1998.
GOMES, Orlando. Direito de Família. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 14. ed., atual. por Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense. v. V.
PERLINGIERI, Pietro. Manuale di Diritto Civile. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2002.
VIRALLY, Michel. La pensée juridique. Paris: L.G.D.J, 1998.
Professora Titular da Faculdade de Direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ;
Professora do Mestrado da Faculdade de Direito de Campos - FDC.
SUMÁRIO: 1 As Relações Fundadas no Afeto: Reconhecimento Jurídico; 2 Parentesco; 3 A Socioafetividade como Critério de Parentesco; 4 Efeitos Jurídicos do Parentesco Socioafetivo. Referências Bibliográficas.
A Constituição da República de 1988 promoveu profundas alterações no Direito de Família, não só para harmonizá-lo com os valores ali consagrados, como também para concluir e sedimentar o processo de recepção da realidade social pelo ordenamento. As diretrizes jurídicas que regem as relações familiares foram constitucionalmente estabelecidas, dentre as quais se destacam os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. A família, até então sinônimo de casamento, passou por sensíveis modificações em sua vocação e forma de constituição, em razão de fatores econômicos e sociais, aos quais se agregaram os efeitos da biotecnociência. Novos arranjos familiares surgiram, desafiando a ordem jurídica. O afeto ganhou relevância perante o Direito, gerando vínculos, direitos e obrigações na órbita familiar.
Nessa pauta de "inovações", doutrinadores e tribunais passaram a referir-se à socioafetividade, especialmente nos conflitos sobre paternidade. A matéria, contudo, não se encontra pacificada e não estão consolidados o conceito e efeitos jurídicos da socioafetividade como critério de parentesco, os quais devem ser construídos à luz dos princípios constitucionais. Indispensável sejam ponderados os interesses de todos os envolvidos, e que a análise da questão considere não só os laços afetivos, mas, principalmente, as repercussões sociais (sócio) geradas por esses laços (afetividade).
1 As Relações Fundadas no Afeto: Reconhecimento Jurídico
Tão importante quanto as prescrições legais, os vínculos afetivos e os papéis sociais por eles gerados passaram a ser reconhecidos pelo direito, de que é exemplo cabal a união estável. Gerada por laços afetivos, a união entre homem e mulher sem casamento chegou a ser considerada imoral no início do século passado, e só após décadas de batalhas judiciais foi reconhecida como entidade familiar, passando pelo concubinato, pelo companheirismo e chegando finalmente à união estável.
Mas não só o afeto gerou a legitimação das uniões livres. A situação social do casal, agindo e sendo reconhecido como "marido e mulher", certamente mais do que o afeto, foi decisivo para tanto. Voltada inicialmente para a proteção da mulher, a admissão dessas uniões, para fins de produção de efeitos jurídicos, exigia o atendimento de três requisitos: a reputatio, nominatio e tractatus, ou seja, a companheira devia ter o trato, o nome e a fama de esposa, sendo o casal tido como tal pelos amigos e pela sociedade .
A partir de 1988, nos termos da Constituição, a união estável entre homem e mulher foi reconhecida como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. A parte final do dispositivo constitucional (art. 226, § 3º) tem gerado polêmica quanto à prevalência do casamento como modelo de família. De acordo com o Código Civil, a união estável configura-se na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família (art. 1.723).
Três aspectos merecem destaque nesse processo de legitimação das uniões sem casamento, no que respeita à produção de efeitos jurídicos, e que interessam diretamente ao presente trabalho. O primeiro diz respeito à prevalência da natureza "familiar" sobre a "societária". Os efeitos patrimoniais, ora decorrentes da união estável, encontram fundamento no princípio da solidariedade e na autonomia da vontade, suplementada pela lei, não mais se exigindo a comprovação de uma sociedade de fato para a partilha do patrimônio comum. O segundo é o locus da configuração da união estável.
Embora seja, por natureza, uma relação privada, é necessário que se exteriorize como vida familiar, que a convivência seja pública. Não basta que a união seja contínua e duradoura, é preciso ser socialmente tida e havida como uma família. O terceiro aspecto, não menos importante, é sua natureza jurídica: a união estável sempre foi, e continua sendo, um fato. Não tendo qualquer prova pré-constituída, como o casamento, sua existência se evidencia na vida de relação, no contato social, ou, como quer o Código Civil, na "convivência pública". A produção dos efeitos prescritos pela lei depende do reconhecimento judicial dessa convivência, do vínculo - socioafetivo - que ali se construiu.
Outras situações de fato, de natureza familiar, igualmente geradas pelo afeto, são de há muito acolhidas pelo direito, sob a denominação de "posse do estado de casado" e "posse do estado de filho". Construída sob o império do casamento, então única forma "legítima" de família e de "legitimação" dos filhos, a noção de posse vem sendo reinterpretada à luz das diretrizes constitucionais. Como observa Caio Mário da Silva Pereira, a lei não esclarece em que consiste a posse de estado, concebendo a doutrina tal estado de fato, em paralelo à posse das coisas, como um estado de direito, uma vez caracterizada pela nominatio, tractatus e reputatio.
A posse do estado de casado era ao tempo do Código Civil de 1916 (art. 203) "a melhor prova" de confirmação da existência do casamento, embora não bastante. Caracterizada pela nominatio, tractatus e reputatio, supria a falta do registro do casamento, com o propósito de beneficiar os filhos comuns, que só eram legítimos, vale dizer, somente teriam o estado de filhos com os direitos que lhe são próprios, se casados os pais. Indispensável, porém, fossem atendidos os requisitos legais: que os pais estivessem mortos, que tivessem vivido na posse do estado de casados e que os filhos provassem tal qualidade, nem sempre fácil antes do advento do exame de DNA. O vigente Código Civil manteve a orientação anterior, incluindo, além das pessoas falecidas, as que não possam manifestar vontade.
A prova do casamento dos pais importa atualmente apenas para fins de presunção da paternidade, suprindo ou complementando a prova da filiação, em razão do princípio constitucional da igualdade dos filhos. Embora não prevista em lei, mas originalmente com o mesmo propósito de suprir a falta ou o defeito do assento de nascimento, a posse do estado de filho, admitida pela doutrina, constitui-se "por um conjunto de circunstâncias capazes de exteriorizar a condição de filho legítimo do casal que o cria e educa".
Além de caracterizar-se igualmente pela nominatio (ter o nome dos pais), tractatus (ser continuamente tratado como filho legítimo) e fama (ser constantemente reconhecido, pelos pais e pela sociedade, como filho legítimo), deviam os pais ser casados ou terem vivido na posse do estado de casado, pressuposto para a legitimidade dos filhos.
Não mais se cogita sobre a legitimidade, mas a posse do estado de filho, como sob outra ótica preconizava Orlando Gomes, deve ser considerada "excelente prova" da filiação (não mais legítima), "porque constitui um reconhecimento contínuo, perseverante, quotidiano, público e notório da filiação", que por tais qualidades só pode se construir tendo por base o afeto. Segundo o autor, possuir o estado de filho é ser tratado como tal. Esta afirmativa hoje é de todo válida como prova bastante da filiação, presentes as características mencionadas, independentemente da situação jurídica dos pais, uma vez que não mais cabe exigir seu casamento, especialmente em face do disposto no art. 229 da Constituição da República.
Constata-se que não é recente a legitimação de determinados fatos como situação jurídica geradora de direitos e deveres, não só no campo do direito de família, como no das obrigações e no do direito das coisas. Em cada caso haverá efeitos jurídicos próprios de natureza pessoal e patrimonial, respectivamente. Observe-se, especialmente no caso das relações familiares, a importância das repercussões sociais para que ocorra o reconhecimento jurídico da situação de fato existente.
A produção de efeitos dependerá de sentença que confere efeito de direito ao fato, autorizando os envolvidos a desfrutar as vantagens e a suportar encargos pertinentes.
O vínculo que surge entre pessoas que convivem como se fossem pais e filhos se inclui nas relações de fato fundadas no afeto aptas a serem juridicamente reconhecidas. O estudo da questão deve levar em conta: (a) o importante papel que o afeto tem nas relações familiares, especialmente na construção de vínculos como o do casamento, da união estável e do parentesco; (b) a expansão do afeto, surgido no espaço eminentemente privado, para o espaço público, assumindo as pessoas funções sociais que autorizam o reconhecimento jurídico das relações assim criadas; (c) a consequente permanência dos efeitos jurídicos dos vínculos gerados pelo exercício dessas funções, atendidos determinados requisitos, ainda que findo o afeto que os originou.
Tais aspectos devem ser considerados, visto que as relações familiares verdadeiras são afetivas, embora muitas relações familiares jurídicas não o sejam. A verdadeira família é uma comunhão de afetos, antes de ser um instituto jurídico. A união estável, assim como a união homossexual, também denominada homoafetiva, tem sua origem e existência em função do afeto entre seus integrantes. O afeto é um sentimento que se traduz em fatos para o direito, fatos esses que se verificam na convivência social, originando a socioafetividade. Do mesmo modo que as mencionadas entidades familiares, o parentesco pode ser gerado apenas pela socioafetividade, que é um fato.
Esclarece Pietro Perlingieri que o termo "fato" tem mais de um significado: o "fato" objeto da ciência natural não é o mesmo objeto de uma ciência prática como o direito, para a qual fato é qualquer evento que evoque a ideia da convivência ou de relacionamento. Fato é o evento ou o estado valorado pela norma; o efeito é a consequência jurídica que se liga ao fato. O fato, no seu verificar-se, atua quando previsto na lei: o ordenamento lhe atribui uma qualificação e uma disciplina. Ter um estado é ter de fato o título correspondente, desfrutar as vantagens a ele ligadas e suportar seus encargos.
Para Orlando Gomes, a posse de estado é uma presunção juris tantum. Há uma crença de que os fatos produzem efetivamente e por eles mesmos efeitos jurídicos. Na verdade, a sucessão fato-efeito jurídico pode ser considerada verdadeiramente causal, porque ela é constante e necessária, mas uma análise mais atenta mostra suas anomalias. Estão ligados dois elementos de ordem diversa, na medida em que um realça a história e o outro a normatividade, ou seja, as representações intelectuais.
De acordo com Michel Virally, é necessária a intervenção de uma determinação exterior, sobreposta, conferindo efeito de direito ao fato, atribuindo-lhe o caráter de causa e pertencente ela mesma à ordem jurídica. Em uma palavra, a passagem do fato ao direito supõe a existência de uma regra jurídica, que representa a causa primeira, e o fato, ao qual se vinculam consequências jurídicas, que não é, senão, a segunda causa, e de qualquer modo ocasional.
Para o autor a apreensão do fato pelo direito se verifica de modo verbal, cabendo ao direito designar o fato ao qual atribui consequências jurídicas. O direito dispõe para tanto apenas de recursos de linguagem. Embora seja um fato simples, que se resume em nomear, muitas incertezas daí resultam, posto que em algumas hipóteses não há acordo sobre as definições, e em outras a regra deverá recorrer a uma descrição abstrata, por vezes vaga, que levanta dificuldades e contestações na aplicação ao caso concreto. Além disso, os fatos para penetrarem no direito devem ser conceituados, operação que também comporta controvérsias, embora a conceituação do fato não altere a natureza, havendo apenas a submissão do fato a um tratamento intelectual.
O direito se interessa, portanto, mais por sua própria criação, por aquilo que ele agregou, do que pela realidade objetiva. Isto gera um risco de deformação e desconhecimento do real, preocupando-se o jurista, por vezes, mais com detalhes que lhe parecem importantes e lhe permitem, enfim, citar um artigo do Código. Sobre este aspecto, faz Michel Virally interessante observação: segundo o autor, o direito dá mais importância aos modos de constatação dos fatos, do que aos fatos propriamente ditos, o que pode conduzir ao absurdo. Assim aquele que, por um erro material, foi registrado com um sexo oposto ao seu ou foi declarado morto, terá que provocar uma decisão judicial para ser reconhecido como indivíduo do sexo masculino ou para impedir a abertura de sua sucessão. Sem a intervenção judicial, o direito o considerará como mulher ou morto. Chega-se ao limite de não haver qualquer relação entre a verdade dos fatos e sua significação jurídica.
No momento em que se tem como diretrizes a proteção da pessoa humana, em sua dignidade, e a solidariedade, impõe-se rejeitar, principalmente em matéria de família, qualquer afastamento entre a verdade dos fatos e sua significação jurídica. A relação familiar, em especial a de filiação, é gerada pelo afeto e construída tanto no espaço privado, quanto público, sendo, por natureza, socioafetiva.
2 Parentesco
O Código Civil, oriundo de projeto anterior à Constituição, na tentativa de "adaptar-se" a tais diretrizes, acabou por instaurar diversas dúvidas, muitas das quais ainda não respondidas. Nessa linha de indagações inscreve-se o parentesco, vínculo de fortes repercussões pessoais e patrimoniais, que se constitui no seio das famílias reconhecidas e dos novos arranjos familiares, de que são exemplo as uniões homoafetivas, os quais desafiam a ordem jurídica ao exigir o reconhecimento dos direitos das pessoas que as integram.
De acordo com o Código Civil, o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem (art. 1.593), e se estrutura em linhase graus, nos termos ali estabelecidos (arts. 1.591, 1.592, 1.594 e 1.595). A doutrina e a jurisprudência atuais entendem que o parentesco "natural", resultante da consanguinidade, é o parentesco biológico ou genético, e o "civil", resultante de "outra origem", é o socioafetivo, compreendendo a adoção e a filiação oriunda das técnicas de reprodução assistida heterólogas, vale dizer, naquelas em que haja participação de doador de material fecundante estranho ao casal. O parentesco civil constitui uma ficção jurídica, na medida em que é criado pela lei.
Seu estabelecimento se dá por força da presunção legal de paternidade, do reconhecimento voluntário ou mediante sentença, nos casos de adoção ou reconhecimento judicial. A aplicação dessa norma deverá sempre atender os princípios constitucionais, especialmente no caso os princípios do melhor interesse da criança e da paternidade responsável.
Já se afirmou como verdade incontestável que o parentesco deriva sempre da filiação. Efetivamente é o que se constata: para fim de determinação da linha ou do grau do parentesco, tomar-se-á sempre como referência uma determinada relação de ascendência e descendência, vale dizer, de filiação. Na verdade, para todos os fins jurídicos, o parentesco é fixado em lei que prevê, como referido, diferentes critérios para seu estabelecimento.
Embora haja constante menção à paternidade ou maternidade socioafetiva, impõe-se ressaltar que, uma vez criado o vínculo de filiação, igualmente instauradas estarão todas as linhas e graus do parentesco, passando a produzir todos os efeitos jurídicos pessoais e patrimoniais pertinentes. Em consequência, o eventual reconhecimento judicial de determinada relação de parentesco, como a existente entre dois irmãos, ou entre tio e sobrinho, com fundamento genético ou socioafetivo, implicará, necessariamente na vinculação de outras pessoas, que fazem parte da cadeia familiar, visto que há de se remontar ao ancestral ou tronco comum. Em outras palavras, os irmãos terão pelo menos um ascendente comum, pai ou mãe. Do mesmo modo, o tio e o sobrinho, pelo menos por uma linha de ascendência, paterna ou materna, terão um ancestral comum (pai do tio e avô do sobrinho).
O reconhecimento isolado de determinada relação de parentesco, como a de filiação que não alcance os demais parentes, ou mesmo de parentesco na linha colateral, à semelhança do previsto no art. 376 do Código Civil de 1916, não parece encontrar amparo legal. Ao contrário, afronta o princípio da plena igualdade entre os filhos que iniciam ou são atingidos pela cadeia familiar.
3 A Socioafetividade como Critério de Parentesco
O afeto não tem aceitação pacífica como elemento que legitime o reconhecimento jurídico do vínculo socioafetivo. Tal rejeição, em geral, se dá pela natural instabilidade das relações afetivas: findo o afeto, seria questionável o fundamento para a manutenção dos efeitos jurídicos. Não obstante alguns tribunais têm feito prevalecer o vínculo socioafetivo sobre o biológico. Este entendimento só considera, ou privilegia, o componente afetivo do vínculo, preterindo os efeitos sociais, por vezes irreversíveis, que a convivência gera.
A socioafetividade, como acima referido, é um critério para estabelecimento de relações familiares geradas pelo afeto, que se exterioriza na vida social. É um fato a ser apreendido pelo direito. Seu reconhecimento por sentença é condição para sua eficácia jurídica.
Para tanto deve ser provada a existência dos elementos que a compõe: o externo (o reconhecimento social) e o interno (a afetividade). O elemento externo traduz o interno, podendo ser identificado objetivamente, mediante a aferição dos requisitos típicos das relações fundadas no afeto: tractatio, reputatio e nominatio. Acresça-se o cuidado dedicado ao parente socioafetivo, passível de verificação objetiva, como uma das melhores formas de expressão do afeto.
A posse do estado de filho, interpretada de acordo com as diretrizes constitucionais, é prova bastante para fins de declaração da filiação, gerando o parentesco "outra origem", segundo o critério da socioafetividade. À semelhança do que acontece com a declaração da paternidade segundo o critério biológico ou genético, os parentes do pai socioafetivo, assim reconhecido por sentença, tornam-se parentes do filho socioafetivo, nos limites da lei, sob pena de afronta ao princípio constitucional da igualdade entre os filhos.
O reconhecimento do vínculo de filiação socioafetiva, gerando o parentesco socioafetivo para todos os fins de direito, nos limites da lei civil, se legitima no interesse do filho. Se menor, com fundamento no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente; se maior, por força do princípio da dignidade da pessoa humana, que não admite um parentesco restrito ou de "segunda classe". O princípio da solidariedade se aplica a ambos os casos, eis que fundamento do vínculo de parentesco, qualquer que seja o critério adotado. Eventuais limitações do parentesco dependem de lei, que deve harmonizar-se com as diretrizes constitucionais.
Pelos mesmos motivos acima, o critério da socioafetividade deve prevalecer na hipótese de confronto com o biológico. Uma vez reconhecido por sentença o parentesco socioafetivo, seus efeitos permanecem indefinidamente, à evidência ressalvada a desconstituição judicial do vínculo. Observe-se que, mesmo que cessado o afeto que o originou, suas repercussões sociais se mantêm, podendo sua eventual reversão causar danos morais, se não patrimoniais, aos envolvidos. Cite-se como exemplo a alteração do nome, que pode comprometer irreversivelmente a identidade da pessoa.
O parentesco socioafetivo, em regra, decorre do reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva, gerando todos os efeitos pessoais e patrimoniais que lhe são inerentes. Não se deve afastar a possibilidade de seu reconhecimento em outra linha ou grau, como a colateral de segundo grau (irmãos). Em tal caso, como antes observado, haverá, necessariamente, a vinculação de outras pessoas, que fazem parte da cadeia familiar, visto que há de se remontar ao ancestral ou tronco comum. A questão merece maior aprofundamento, especialmente em razão dos princípios constitucionais envolvidos, mas escapa aos estreitos objetivos do presente trabalho.
4 Efeitos Jurídicos do Parentesco Socioafetivo
Para que se identifiquem os efeitos da socioafetividade é necessário determinar sua natureza jurídica e estabelecer seu conceito. A socioafetividade é um fato, onde se constatam dois aspectos (sócio + afetivo). Gerado pela afetividade, o vínculo se externa na vida social, à semelhança de outras relações fundadas no afeto, mediante (pelo menos) reputatio, nominatio e tractatus, que são seus requisitos e que permanecem, mesmo quando findo o afeto, porque construídos na convivência em sociedade. Presentes esses requisitos, a socioafetividade é um dos critérios para reconhecimento do vínculo de parentesco de outra origem, a que se refere o art. 1.593 do Código Civil.
Para que produza efeitos jurídicos, a socioafetividade deve ser reconhecida por sentença, uma vez feita a prova do afeto, sem dúvida de natureza subjetiva, e, necessariamente, dos efeitos sociais daí decorrentes, passíveis de aferição objetiva. A comprovação dos efeitos sociais autoriza a declaração do vínculo de parentesco, mesmo contra a vontade do pai (ou da mãe), que não tem mais afeto por aquele que, até então, fora seu filho.
O parentesco socioafetivo produz todos e os mesmos efeitos do parentesco natural. São efeitos pessoais: (a) a criação do vínculo de parentesco na linha reta e na colateral (até o 4º grau), permitindo a adoção do nome da família e gerando impedimentos na órbita civil, como os impedimentos para casamento, e pública, como os impedimentos para assunção de determinados cargos públicos; (b) a criação do vínculo de afinidade. Sob o aspecto patrimonial são gerados direitos (deveres) a alimentos e direitos sucessórios. O reconhecimento do parentesco com base na socioafetividade deve ser criterioso, uma vez que, como demonstrado, envolve terceiros, não necessariamente envolvidos na relação socioafetiva, mas que certamente serão alcançados pelo dever de solidariedade que é inerente às relações de parentesco.
Referências Bibliográficas
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GOMES, Orlando. Direito de Família. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
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PERLINGIERI, Pietro. Manuale di Diritto Civile. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2002.
VIRALLY, Michel. La pensée juridique. Paris: L.G.D.J, 1998.
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