O Programa Nacional dos Direitos Humanos e a Possibilidade da Descriminalização do Aborto

Fernando Gentil Gizzi de Almeida Pedroso

Não só dada a alteração do programa nacional de direitos humanos, mas, também, em razão do debate recente dos presidenciáveis, exsurgiu o tema aborto no epicentro das acaloradas discussões que permeiam o centro acadêmico. Daí, a imprescindibilidade de perscrutar a (im)possibilidade do abortamento na sociedade.  
Em meados do mês de maio do presente ano, o programa nacional de direitos humanos ganhou nova redação, alterando, dentre vários pontos, a viabilidade de abortamento. Nota-se, entretanto, que apesar da nova reforma obstar a concreção de aborto - tal como o Código Penal atual -, a descriminalização dessa conduta permanece uma incógnita, haja vista as diversas mutações que o denotado programa tem sofrido, bem como em razão dos palpitantes debates dos presidenciáveis sobre o assunto.
De qualquer modo, antes de se adentrar no cerne do presente questionamento, é imprescindível notar que nenhum direito é absoluto, nem mesmo a vida, bem jurídico máximo de acordo com a nossa Constituição - lei suprema do Estado brasileiro e fundamento de validade de todas as demais normas jurídicas.
Não por outra razão, observa-se que a própria Carta Magna esboça uma exceção explícita à tutela da vida, que é a pena de morte em caso de guerra declarada (art. 5º, inciso XLVII, alínea a, da CRFB).
No mesmo passo, calha salientar que o bem jurídico vida pode, por vezes, se defrontar com outros direitos fundamentais. De tal arte, para se sanar este conflito, é necessária a concreção de uma ponderação valorativa, indicando, no caso em concreto, qual direito deverá preponderar - como muitas vezes se verifica na legítima defesa, situação autorizada pelo direito.
Diga-se de passagem, é no âmago desse juízo avaliativo que se encontram, além da outra possibilidade de se excepcionar a vida - já que, como visto, esta privação não se pode dar arbitrariamente -, os argumentos sobre a descriminalização do aborto.
Vejamos
Num primeiro pensar, tendencioso a descriminalização do aborto, se vislumbram direitos da gestante a uma vida digna - fundamento da Constituição.
Daí, para prevalecer sobre o bem vida, valoram-se inúmeros direitos que devem ser observados para a genitora, como:
a) o direito de autonomia reprodutiva e a sua liberdade de escolha, inviabilizando-se, nesse sentido, uma maternidade indesejada; b) direito à privacidade, competindo a análise sobre a plausibilidade do abortamento a gestante, e não a ingerência estatal; c) Por fim, direito à igualdade, haja vista que as mulheres com melhores condições de vida continuarão abortando de forma mais segura que aquelas que não apresentam a mesma possibilidade de subsistência.
En passant, é por isso que "muito raramente morre, por essa causa, uma mulher rica". Relembrando que, não por outra razão, "as mortes, aqui, atingem quase 100% as mulheres pobres".
Como consequência desse entender, para combater o flagelo do aborto clandestino e as famigeradas fazedoras de anjinhos, o aborto deveria ser visualizado, no âmbito penal, como mera questão de saúde pública, haja vista que "no Brasil uma mulher faz aborto a cada 33 segundos e a prática insegura mata uma delas a cada dois dias (O Globo de 10.10.10, p. 3)".
Id est, deste modo se tutelaria a gestante, fornecendo a ela todo suporte médico necessário para a concreção do aborto, obstando, nesse passo, vindouras e plausíveis infecções que sobejariam em seus últimos estertores e lampejos vitais. Ou seja, haveria uma liberação condicionada à provocação por médicos habilitados e em clínicas especializadas, diminuindo, consideravelmente, o risco à vida ou a incolumidade da gestante.
Por demais, como questão de saúde pública, ainda haveria maior controle estatístico de quantos abortos, de fato, são realizados em nosso solo (que de mãe gentil, nada teria) e, precipuamente, em quais localidades há uma maior concentração de tais atos. Fato que, por si só, auxiliaria na prevenção e, quiçá, diminuição do índice de abortamentos concretizados.
Desmiúde, inclusive, a questão de política criminal, pautado na inocuidade da pena para inibir a sua frequência, bem como no ultrapassado pensar de muitos profitentes desta tese, em que "o pequeno ser nada mais é senão um anexo ocasional do organismo materno, preso em suas entranhas, de modo que, como parte da mulher ou de suas vísceras, dele a gestante poderia livremente dispor (...)".
Noutro prisma, contrário à descriminalização do aborto, respeitam-se os direitos do feto.
Para tanto, pontuam que o nosso Código Civil, apesar de natalista, reconhece direitos da personalidade ao nascituro, como o direito à vida - que se inicia a partir da concepção. Nessa senda, hialino que de igual modo que se perfaz com a gestante, pode-se asseverar que o nascituro é considerado pessoa, daí, cabe a ele a proteção dada pelo axioma da dignidade da pessoa humana.  
Vale exacerbar. Há garantia Constitucional, infraconstitucional (até mesmo em razão do fenômeno da filtragem constitucional) e supralegal (dada por convenções e tratados internacionais de direitos humanos, aprovados sem o quorum de emenda constitucional) da tutela à vida do feto.
Sem olvidarmos, ainda, que a legalização aumentaria o número de abortos realizados, inclusive com a existência de diversos métodos anticonceptivos. Possível, outrossim, o abandono, por parte de alguns, dos instrumentos de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, ampliando, quiçá, o número de infectados por tais enfermidades.
Nesse mesmo cadinho, tratar o aborto como questão de saúde pública, embora impressione, não chega a convencer, uma vez que o preço cobrado "para as intervenções cirúrgicas e internações para este fito é exorbitante".
De tal arte, "a camada mais pobre da população, que concentra a maior parte do contingente abortador, continuaria, indubitavelmente, a procurar as famigeradas parteiras e curiosas, em ambientes nada ascéticos" - persistindo a clandestinidade.
Em nosso pensar, é esse último entender que deve preponderar.
Isso porque, além dos bem fundados argumentos, viabiliza-se o aborto em casos excepcionais, garantindo, de igual maneira, os direitos da gestante.
É o que ocorre, exempli gratia, no caso de acrania, em que o feto não possui atividade cerebral; na hipótese de aborto necessário, que é o único meio para salvaguardar a vida da gestante (art. 128, inciso I, do CP); e, igualmente, no caso de gravidez resultante de estupro (art. 128, inciso II, do CP).
E, além do mais, deve-se respeitar o princípio democrático e, seu corolário, a tripartição das funções de poder, que assegura a existência de "poderes" harmônicos e independentes.  
Cumpre elucidar. Em virtude do princípio democrático, extrai-se a soberania popular, em que a ordem de domínio é legitimada pelo povo.
Nesse passo, ainda que sejamos um estado laico (secular ou não confessional) desde a Constituição Republicana de 1891, é indiscutível a presença da religião no âmago dos cidadãos. Razão pela qual, data venia, o elucubrar de que direito é direito e religião é religião, 71% da população se posicionou contrariamente à prática do aborto (Folha de São Paulo de 11.03.10).
Assim sendo, ainda que nosso corpo legiferante se mantenha estagnado, não compete ao poder judiciário, por um ativismo jurisdicional incabido - dada a inexistência de lacuna legislativa -, inovar a ordem jurídica, sob pena de vilipendiar o tão engendrado sistema de freios e contrapesos até então ajustado. Isto é, quebrar-se-ia a harmonia entre os poderes.
Portanto, com respeito aos posicionamentos em sentido diverso, conclui-se que deverá prevalecer, ainda, em nosso ordenamento, a impossibilidade de abortamentos, como regra; ainda que não seja pacífica a presente temática dado a sua interdisciplinaridade de diretrizes (seja de ordem religiosa, política ou jurídica).
  

    Referências Bibliográficas   
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