Crimes Sexuais e a Pessoa Vulnerável

José Carlos Teixeira Giorgis
Desembargador Aposentado do TJRS; Mestrando;
Professor da Escola da Magistratura/RS; Especialista
em Ética e Bioética.
  
RESUMO: A bioética ultrapassa o campo tradicionalmente reservado à ética médica, incluindo em suas preocupações o sistema político e jurídico da sociedade, visando temas diversos, como ecologia, direito das futuras gerações, direitos sociais e individuais. Ela é um campo de reflexão e de ação interdisciplinar, pois com sistema aberto compõe-se de vários subsistemas (disciplinas), os quais se inter-relacionam através das trocas de conhecimentos e valores. A noção de vulnerabilidade tem albergue bioético, cuidando-se de moeda circulante no meio científico, especialmente no âmbito do relacionamento com os pacientes, como ainda em pesquisa e intervenções. Denominam-se pessoas vulneráveis os seres de relativa ou absoluta incapacidade de proteger seus proveitos ou que não tenham poder, inteligência, educação, recursos, forças ou outros atributos necessários a garantir suas conveniências. Portanto, a vulnerabilidade manifesta uma relação assimétrica entre o fraco e o forte, o que demanda um compromisso eticamente adequado de que o mais poderoso proteja o mais fraco. Segundo a novidadeira ótica penal, constituem delitos penais contra pessoas vulneráveis os praticados contra quem tenha 14 (catorze) anos ou menos, ou aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tenham o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possam oferecer resistência. Percebe-se que os saberes modernos não abdicam de uma política interdisciplinar em que as especialidades se subjugam à modéstia científica, aceitando uma constante integração onde os conceitos e conteúdos se permeiam como vasos comunicantes.
  
1 Notas Iniciais
As regras jurídicas debruçam sobre o fato cultural, repercutindo os clamores da sociedade, embora algumas vezes em instante retardatário. Essa ressonância exige constante observação dos fenômenos sociais e pronta atualização das normas enfraquecidas pelo inesperado acontecimento humano.
O ordenamento penal se mostra ávido no cumprimento deste axioma, todavia as medidas profiláticas se demoram em relação à apoteose criminosa, mais ágil e criativa na desobediência ao estatuto do equilíbrio e paz.
Ainda recentemente o legislador fez incursão no vetusto aparato das leis criminais, especialmente no catálogo das penas e dos crimes hediondos, retocando alguns conceitos, melhorando outras acepções e até introduzindo vocábulos apropriados a alguns ramos de conhecimento, numa elogiável integração científica, embora aqui e ali se possam endereçar críticas.
Utilizou-se a técnica da reforma pontual, que adota uma estratégia bem sucedida para superar os obstáculos opostos pela rotina congressual afeita ao alongamento dos debates e comissões, além da notória intromissão de leigos em assuntos de especial sensibilidade jurídica; é verdade, contudo, que essa forma pode comprometer a visão sistêmica ao dedicar-se apenas a um setor preciso e definido.
A cirurgia estética incidiu sobre os crimes sexuais, agora crimes contra a dignidade sexual em revide ao longevo rol de crimes contra os costumes, tão apreciados nas lições acadêmicas do passado e que originaram páginas doutrinárias de rara beleza e estilo nas obras dos comentadores clássicos (Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009).
Desde logo se aponta influência de velhos preconceitos morais que bitolam a vida dos cidadãos quando se perde a oportunidade de designar o objeto jurídico dos delitos referidos com rigor científico, pois aquele é na verdade a dignidade da pessoa humana, e não uma confusa dignidade sexual, expressão que gera perplexidade; é que as posturas adotadas nos relacionamentos íntimos, onde a pulsão sexual vence os óbices do asco, ridículo, medo e moralidade não podem ser tidas como especialmente dignas, mas ao contrário; adota-se um conceito variável e flutuante que se relaciona diretamente com a moralidade enquanto a dignidade da pessoa se liga ao respeito devido ao ser humano.
Nesse aspecto registram-se no direito brasileiro, e cada vez mais, a inclusão de conceitos vagos ou indeterminados, substituindo definições precisas por outras formas linguísticas de referencial semântico pouco nítido; carecedoras de contornos claros, essas expressões genéricas estão indicadas na lei, com conteúdo e extensão altamente genéricos, relacionando-se com a hipótese fática posta na causa; e pedem um preenchimento valorativo, o que acontece caso a caso, cabendo ao juiz, no momento de subjugar o fato à norma, dar luz à vagueza e dizer se a norma atua no caso concreto, enfeitando-a com os valores éticos, morais, sociais, econômicos ou jurídicos existentes na época.
O princípio da dignidade da pessoa humana é prólogo de várias cartas constitucionais modernas (Lei Fundamental da República Federal Alemã, art. 1º; Constituição de Portugal, art. 1º; Constituição da Espanha, art. 1º; Constituição Russa, art. 21; Constituição do Brasil, art. 1º, III, etc.).
Alicerça-se na afirmação kantiana de que o homem existe como um fim em si mesmo, e não como mero meio (imperativo categórico), diversamente dos seres desprovidos de razão que têm valor relativo e condicionado e se chamam coisas; os seres humanos são pessoas, pois sua natureza já os designa com um fim, com valor absoluto.
Reputa-se que o princípio da dignidade não é um conceito constitucional, mas um dado preexistente a toda experiência, verdadeiro fundamento da República brasileira, atraindo o conteúdo de todos os direitos fundamentais; não é só um princípio da ordem jurídica, mas também da ordem econômica, política, cultural, com densificação constitucional.
É um valor supremo e acompanha o homem até sua morte, por ser da essência da natureza humana. A dignidade não admite discriminação alguma e não estará assegurada se o indivíduo é humilhado, perseguido ou depreciado, sendo norma que subjaz à concepção de pessoa como um ser ético-espiritual que aspira determinar-se e desenvolver-se em liberdade.
Não basta a liberdade formalmente reconhecida, pois a dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, reclama condições mínimas de existência digna conforme os ditames da justiça social como fim da ordem econômica.
Assim, a ideia de dignidade humana não é algo puramente apriorístico, mas que deve concretizar-se no plano histórico-cultural, e para que não se desvaneça como mero apelo ético impõe-se que seu conteúdo seja determinado no contexto da situação concreta da conduta estatal e do comportamento de cada pessoa.
Neste sentido assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e da comunidade em geral, de todos e de cada um, condição dúplice que também aponta para uma simultânea dimensão defensiva e protetora da dignidade.
Como limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade é algo que pertence necessariamente a cada um e que não pode ser perdido e alienado, pois se não existisse, não haveria fronteira a ser respeitada; e como tarefa (prestação) imposta ao Estado, a dignidade da pessoa reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando a promoção da dignidade, especialmente criando condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade, que é dependente da ordem comunitária, já que é de perquirir até que ponto é possível o indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais básicas ou se necessita para tanto do concurso do Estado ou da comunidade.
Uma dimensão dúplice da dignidade manifesta-se enquanto simultaneamente expressão da autonomia da pessoa humana, vinculada à ideia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria existência, bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e do Estado, especialmente quando fragilizada ou até mesmo quando ausente a capacidade de autodeterminação.
A contribuição da Igreja na afirmação da dignidade da pessoa humana como princípio elementar sobre os fundamentos do ordenamento constitucional brasileiro, antes da Assembleia Constituinte, se efetivou em declaração denominada "Por uma Nova Ordem Constitucional; aqui os cristãos foram instados a acompanhar e posicionarem-se quando se tentasse introduzir na nova carta elementos incompatíveis com a dignidade e a liberdade da pessoa".
Ali constou que todo o ser humano, qualquer que seja sua idade, sexo, raça, cor, língua, condição de saúde, confissão religiosa, posição social, econômica, política, cultural, é portador de uma dignidade inviolável e sujeito de direitos e deveres que o dignificam, em sua relação com Deus, como filho, com os outros, como irmão, e com a natureza, como Senhor.
Desta forma, a consagração do princípio da dignidade humana implica em considerar-se o homem como centro do universo jurídico, reconhecimento que abrange todos os seres; e que não se dirige a determinados indivíduos, mas a cada um individualmente considerado, de sorte que os efeitos irradiados pela ordem jurídica não hão de manifestar-se, a princípio, de modo diverso ante duas pessoas; daí segue que a igualdade entre os homens representa obrigação imposta aos poderes públicos, tanto na elaboração da regra de Direito quanto em relação à sua aplicação, já que a consideração da pessoa humana é um conceito dotado de universalidade, que não admite distinções.
  

2 A Bioética e a Interdisciplinaridade
O desenvolvimento científico emergente do século passado trouxe ao presente a pompa da ciência da informação; o progresso das ciências naturais suplantou a desconfiança de sua imprevisibilidade e catástrofe que pudesse redundar de sua utilização.
As ciências biomédicas conheceram avanços relevantes nos últimos anos, encarnando-se como personagens de nova revolução industrial, o que trouxe, todavia, o questionamento sobre suas repercussões na vida e no futuro, pois o acelerado crescimento de determinadas técnicas gerou a ambiguidade entre a confiança cega no progresso científico e o temor sobre a sobrevivência do homem e do planeta.
As descobertas tendem a ser apropriadas, não afetam somente algumas pessoas.
O problema não está na possibilidade do uso de tecnologia inovadora, mas na deterioração dos paradigmas éticos, sublinhando-se que o choque resultante é mitigado pela cultura momentânea, o que lhes dá um significado axiológico especial: ou seja, embora as interrogações e perplexidades, o sistema acha respostas adequadas nos valores dominantes da sociedade, e, em especial pela atenção que ela dá ao objeto central das ciências médicas, a vida humana, que merece a consideração no instante em que surgir a inovação e seu uso .
Ao restaurar o questionamento ético, os avanços da tecnociência ainda despertam a comunidade jurídica para a garantia e legalidade de seus atos; é que o desmedido desenvolvimento da biomedicina, para que o homem não estava preparado, comprometia o respeito a seus direitos fundamentais, eis que a pesquisa e a investigação o colocavam no altar dos objetos, e não como sujeito de veneração.
E numa sociedade pluralista, organizada num Estado de Direito, a pauta de valorização das novas biotecnologias se defronta com o respeito a tais direitos, tanto sob a ótica jurídica, como moral, configurando-se a informação e o debate social como imprescindível requisito prévio à elaboração normativa.
Assistiu-se, assim, um crescente despertar de consciência ética em relação a diversos desafios levantados pelos avanços científicos e pelo progresso econômico e técnico.
A humanidade dá-se conta de que nem toda descoberta científica ou vantagem tecnológica traz sempre efeitos puramente benéficos para a pessoa e a sociedade, acordando da visão ingênua de uma ciência isenta de interesses espúrios e de uma técnica limpa e benéfica, sendo preciso um saber mais global e interdisciplinar, com uma argumentação ética consistente.
Não basta apenas remeter a questão ao contexto cultural, mas esclarecer a visão de ser humano que serve de referencial para a solução, eis que a vida humana não é pura realidade biológica, mas antes de tudo um evento pessoal.
Neste nicho se insere a bioética, como um estudo sistemático das dimensões morais das ciências da vida e da saúde.
A medicina é desde a antiguidade uma das profissões mais conscientes das dimensões morais que envolvem o seu exercício, sendo o Juramento de Hipócrates o primeiro testemunho dessa compreensão ética, eis que ali se abordam as implicações do médico com seus professores, o enfermo e seus familiares.
Descabe neste texto o relato de toda a construção ética da modalidade, bastado sublinhar que 1971, Van Rensselaer Potter, oncólogo e professor em Wisconsin, publica a obra Bioethics. Bridge to the future, onde aparece pela primeira vez o termo bioética (bios, vida, e ethos, ética). Para ele, bioética é a ciência da sobrevivência diante das diferentes ameaças à vida causadas pelo ambiente, compreensão a que chegara depois de pesquisas sobre o câncer, doença que não seria apenas uma enfermidade física, mas derivada da agressão do meio.
Entre os fatores histórico-culturais que propiciaram a eclosão da bioética alinham-se: a) o surgimento dos transplantes entre seres humanos, como os de coração; b) a questão do aborto; c) o avanço dos direitos civis, entre eles a autonomia, intimidade, direito a ser deixado em paz, direito das minorias; d) o avanço dos direitos sociais, como o acesso à saúde pública dos setores menos favorecidos, e) a discussão de questões como a morte e o morrer; f) o avanço na juridicização de direitos, principalmente daqueles que protegem a dignidade e a personalidade das pessoas em resultado da afirmação dos valores individualistas e democráticos, que fazem o indivíduo centro da vida social.
Tais mudanças tiveram ímpeto na prática médica da época, colocando em cheque antiga moralidade hipocrática, baseada na beneficência.
A bioética nasceu e se desenvolveu a partir dos avanços da biologia molecular e da biotecnologia aplicada à medicina realizada nos últimos anos, do pluralismo moral reinante nos países de cultura ocidental; da maior aproximação dos filósofos da moral aos problemas relacionados com a vida humana, sua qualidade, o seu início e fim, das declarações das instituições religiosas sobre tais temas, das intervenções dos poderes legislativos; e inclusive dos poderes executivos em questões que envolvem a proteção da vida ou os direitos dos cidadãos sobre sua saúde e reprodução e do posicionamento de organismos e entidades internacionais.
Disso surgiu um novo interesse multidisciplinar pelo debate e pelo diálogo público sobre os modos de agir corretos ou incorretos dos médicos, pesquisadores, usuários das novas técnicas biomédicas e farmacológicas, pacientes e demais pessoas envolvidas com os problemas da medicina e da saúde.
No Brasil, que na época não havia superado a revolução terapêutica, que afetara a longevidade, causada pelos investimentos estatais no campo da saúde, como vacinação, saneamento ou construção de hospitais, somente na década de noventa, completada a transição demográfica, com o aumento da expectativa de vida, aliada à nova Constituição, as questões bioéticas emergiram com maior vigor.
A bioética, segundo enciclopédia, é o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, enquanto esta conduta é examinada à luz de valores e princípios morais; ou estudo sistemático das dimensões morais - incluindo visão, decisão, conduta e normas morais - das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar.
À luz de suas origens, a bioética é também definida como ética das ciências da vida e da saúde, uma reflexão ética do fenômeno da vida; é um ramo da ética aplicada, que reúne um conjunto de conceitos, direitos, princípios e teorias, com a função de dar legitimidade às ações humanas que podem ter efeito sobre os fenômenos vitais; é um estudo interdisciplinar, ligado à ética, que investiga, na área das ciências da vida e da saúde, a totalidade das condições necessárias a uma administração responsável da vida humana em geral e da pessoa humana em particular; ou o ramo da ética que, junto com outras disciplinas, discute a conduta humana nas áreas relacionadas com a vida e a saúde perante os valores e princípios morais; também se define como um conjunto de reflexões filosóficas e morais sobre a vida em geral e sobre as práticas médicas em particular, abarcando pesquisas multidisciplinares, envolvendo-se nas áreas antropológica, filosófica, teológica, sociológica, genética, médica, biológica, psicológica, ecológica, jurídica, política, para solucionar problemas individuais e coletivos derivados da biologia molecular, embriologia, engenharia genética, medicina, biotecnologia, decidindo sobre a vida, a morte, a saúde, a identidade ou a integridade física e psíquica, analisando eticamente os problemas, para que a biossegurança e o direito possam estabelecer limites à biotecnociência. Impedir abusos e proteger os direitos fundamentais das pessoas e das futuras gerações.
Enquanto a bioética objetiva o exame sistemático da conduta humana, valendo-se de metodologia interdisciplinar, não se confunde com a deontologia médica, que estuda as normas de comportamento profissional específicas das profissões sanitárias, nem com a medicina legal que, embora interdisciplinar, abrange os conteúdos biológicos e médicos das normas jurídicas.
Compreende a bioética geral, que é o discurso sobre os valores e princípios originários da ética médica e sobre as fontes documentais, é uma verdadeira filosofia moral (direito internacional, deontologia, legislação); a bioética especial, que cuida dos problemas sob o perfil médico ou biológico (engenharia genética, aborto, eutanásia, experimentação clínica) e a bioética clínica que examina os valores em jogo e quais caminhos a percorrer, na situação concreta da prática médica e do caso clínico.
Há quem a classifique, ainda, em bioética das situações persistentes, quando se ocupa de problemas cotidianos, como o aborto, a eutanásia, o racismo, a exclusão social e a discriminação; e bioética das situações emergentes, quando trata dos conflitos entre o progresso médico desenfreado dos últimos anos e os limites da cidadania e dos direitos humanos, como a fecundação assistida, doação e transplante de órgãos e tecidos ou engenheiramento genético.
Na mesma linha, a bioética de fronteira, preocupada com os avanços da tecnociência e a bioética do cotidiano, que se preocupa com a fome, a miséria, a exclusão social, o racismo, etc.
A bioética ultrapassa o campo tradicionalmente reservado para a ética médica, incluindo em suas preocupações o sistema político e jurídico da sociedade, visando temas diversos, como ecologia, biotecnologia, direito das futuras gerações, demografia, direitos sociais (assistência à saúde preventiva e curativa); direitos individuais (que incluem o direito de dispor do próprio corpo, que traz questões, como o aborto, eutanásia e transplantes), a reprodução humana por métodos artificiais e o consentimento do paciente para o tratamento médico a ele prescrito.
Como se vê, a bioética tem importante enlace interdisciplinar, confluindo nela especialistas de distintas bagagens, como médicos, biólogos, juristas, filosofia, religiosos, teólogos, etc.
As questões desta ciência se apresentam, muitas vezes sob a forma de tensões entre deveres contraditórios ou aparentemente paradoxais, nada tendo de metafísica, pois é uma disciplina pragmática, pois se uma descoberta pode proporcionar felicidade e salvar vidas, também pode inspirar aplicações perigosas; ela se esforça por proporcionar benefícios, limitando os perigos.
Importa adicionar que a bioética é um campo de reflexão e de ação interdisciplinar, pois com sistema aberto compõe-se de vários subsistemas (disciplinas), os quais se interrelacionam através das trocas de conhecimentos e valores.
Antes confundida com a transdisciplinaridade ou a multidisciplinaridade, tal saber tem como meta estabelecer uma troca de conceitos e experiências entre várias e distintas disciplinas, tendo o objetivo de estabelecer uma síntese desta análise; e com ela almeja obter uma linguagem interdisciplinar dotada de enunciados precisos, aptos a criar um consenso geral entre os cientistas e a filosofia; e tem funções importantes, como ampliar os horizontes das disciplinas para desfazer os contornos limitados que cada uma se impôs ao tentar uma especialização; e retomar o pensamento universal, humanista, através da mediação entre a filosofia e as ciências, único que pode remar o senso de totalidade e integridade do mundo, razão por que se busca fortalecê-la e implementá-la como uma teoria.
Finalmente, a interdisciplinaridade é fundamental para o estabelecimento de uma razão comunicativa válida, pois faz a intersecção dos conhecimentos expressos pelas várias disciplinas, sendo necessário estabelecer uma linguagem comum através de um sistema permeável, flexível e dialético; e onde os agentes sejam mediadores e harmonizadores, conhecedores do processo e identificadores dos problemas, o que ensejará o compartilhamento de referenciais teóricos; aqui a bioética é o campo de conexão das ciências, integrando uma percepção existencial da pessoa, corpo, mente, ambiente e suas complexas interações.
Regressando ao curso da meditação projetada alude-se que a reforma penal pratica um gesto interdisciplinar ao aproveitar expressão de outra ciência.
  
  
3 A Pessoa Vulnerável
A noção de vulnerabilidade tem albergue bioético, cuidando-se de moeda circulante no meio científico, especialmente no âmbito do relacionamento com os pacientes, como ainda em pesquisas e intervenções.
A ideia de pessoa vulnerável transcendeu ao âmbito médico, invadiu outros campos do saber e hoje ilumina alguns ordenamentos jurídicos, como acontece nas relações de consumo ou familiares, os movimentos de proteção dos direitos fundamentais, as diferenças de gênero e sexo, setores onde tal hipossuficiência é fato frequente; a vulnerabilidade de menores, mulheres e idosos em algumas pugnas forenses, onde surgem decisões pouco equânimes ante a fragilidade material do adversário, faz propugnar-se uma recomposição das forças no processo pela intervenção judicial e emprego da teoria da prova dinâmica.
Anotem-se situações em que se manifesta a vulnerabilidade.
Um forte surto de meningite na Nigéria proporcionou experimento de droga fabricada por conhecida multinacional farmacêutica, ainda não aprovado em seu país de origem, o que levou à morte de onze crianças, enquanto outras duzentas ficaram surdas, cegas ou aleijadas; assim também acontecera com indivíduos saudáveis, recrutados na Estônia ou entre refugiados daquele país, levados para clínica suíça em troca de dólares e empregados como cobaias em variadas análises; ou negros americanos tuberculosos tratados com placebos apenas para testar sua resistência à doença, e que sucumbiram.
O uso de seres humanos em pesquisas de produtos fabricados por poderosas empresas é fato recorrente, explorado pelo cinema e pela literatura; mas sofre forte assédio contemporâneo dos órgãos sanitários e de entidades internacionais, em proteção aos indivíduos desprotegidos, não só pela conduta aética que comanda tais ensaios, mas em proteção da dignidade dos sujeitos envolvidos.
Assim, recentes diretrizes de organizações médicas exigem uma justificativa especial para convidar pessoas vulneráveis a servir como sujeitos das pesquisas, e, caso escolhidos, devem ser aplicados recursos de proteção de seus direitos e bem-estar.
Vulnerabilidade é uma palavra de origem latina, derivando de vulnus (eris) que significa "ferida", sendo irredutivelmente definida como suscetibilidade de ser ferido, significação etimológico-conceitual, originária e radical que se mantém em todas as evocações do termo, na linguagem corrente ou especializada, tendo surgido por vez primeira no Relatório Belmont; nele, a classificação se estendia tanto às pessoas singulares como populações, querendo dirigir-se aos que se encontram numa situação de exposição agravada e que possam vir a ser feridas, isto é, serem prejudicadas nos seus interesses pelos interesses de outrem no âmbito das pesquisas biomédicas; e, mais especificamente, nas experimentações humanas.
De acordo com a filosofia de Lévinas, toda subjetividade é uma relação com o outro, na dependência ao outro que o faz ser; a subjetividade é, pois, originária e irredutivelmente dependência, exposição ao outro, e, assim, vulnerabilidade; isso não acontece apenas no plano ontológico, como sua identidade substancial, mas no plano ético, como apelo a uma relação não violenta entre o eu e o outro, na face a face, onde o eu, na sua vulnerabilidade, apresenta-se como resposta não violenta à eleição do outro que o faz ser.
Lévinas aponta para transcender-se para o outro, numa relação imperiosa que denomina alteridade e o faz sem privilegiar o universo utópico kantiano, mas o aqui e agora da vida comunitária, unindo transcendência com cotidianidade, razão e prática; destarte, a relação com o outro seria efetuada no face a face e o sentimento de alteridade não mais gerado pela forma ou natureza dos seres, mas revelado pela epifania do rosto do outro; assim, a missão de cada ser humano não seria ser, mas ser para, aonde o modelo um para outro quebra a hegemonia do ser egoico e propõe a construção de uma sociedade humanizada pela fraternidade.
No mesmo sentido, Hans Jonas chama atenção para a relevância filosófica da vulnerabilidade que entende como caráter perecível de todo o existente:
"Sendo o existente, todo o ser perecível, isto é, finito, mortal, e assim vulnerável, situando-se seu reflexo apenas no plano ético, pois a vulnerabilidade apela para um dever, ou uma resposta ética, à responsabilidade do outro perante a ameaça de perecimento do existente; essa meditação, para o filósofo, não se reduz apenas às relações interpessoais, mas a todos os viventes, num irrecusável alargamento ao plano animal, vegetal e ambiental; mas a dimensão é mais específica aos homens que mais podem e mais devem pelo que, apesar de toda a natureza ser vulnerável, é apenas a pessoa humana que tem poder de destruir todo o existente, e a quem compete a responsabilidade de zelar pela vulnerabilidade, de responder de modo proporcional ao seu poder, de cumprir o seu dever de solicitude face à ameaça; constitutiva do ser humano, a vulnerabilidade é irredutível e inalienável; a vulnerabilidade exprime, assim, o modo de ser do homem, a sua humanidade, e exige um modo específico de agir na resposta não violenta de cada um ao outro, uma ação responsável e solidária, instaurando uma ética de fundamentação antropológica, eis que o modo de agir decorre do modo como somos e como queremos ser; e a nossa comum vulnerabilidade instaura um sentido universal do dever na ação humana."
Denominam-se pessoas vulneráveis, então, os seres de relativa ou absoluta incapacidade de proteger seus proveitos ou que não tenham poder, inteligência, educação, recursos, forças ou outros atributos necessários a garantir suas conveniências.
Desta forma, a principal característica da vulnerabilidade é a liberdade limitada para consentir ou recusar-se a participar da experiência, aí se incluindo os que observam alguma subordinação, como os militares e os estudantes; pessoas idosas, com reconhecida senilidade, residentes em asilos ou abrigos; os beneficiários da previdência ou da assistência social; as pessoas pobres e desempregadas; os pacientes de salas de emergência; alguns grupos étnicos e raciais minoritários; os sem-tetos, nômades, refugiados ou pessoas deslocadas de seu meio; os prisioneiros e as comunidades ignorantes dos conceitos médicos modernos.
Ou seja, todos os que podem ser cooptados pela sedução financeira ou instigação da sobrevivência fácil; outros protocolos acrescentam, também, a capacidade inadequada para discernir a proposta em termos éticos ou científicos; a infraestrutura local deficiente; o pessoal não treinado; a reduzida capacidade técnica para realizar a pesquisa; a limitada disponibilidade dos cuidados de saúde e tratamento fora do ambiente onde se realiza a atividade; ou a ausência de uma efetiva supervisão do exame.
O ser humano é vulnerável como todo o ser vivo, mas, diversamente dos outros animais, não o é apenas em seu organismo e fenômenos vitais, mas ainda na construção de sua vida no seu projeto existencial; especialmente nas pesquisas biomédicas a qualificação de pessoas vulneráveis impõe a obrigatoriedade ética de sua defesa e proteção para que não sejam maltratadas, abusadas ou feridas.
Na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, a Unesco anuncia o dever de respeito à vulnerabilidade humana e integridade pessoal, afirmando que ela deva ser levada em consideração, o que corresponde a reconhecê-la como traço indelével da condição humana, na sua irredutível finitude e fragilidade como exposição permanente a ser ferida, não podendo jamais ser suprimida (art. 8º), mas protegidos; diz, ainda, que a vulnerabilidade, elevada à condição de princípio, visa garantir o respeito pela dignidade humana nas situações em relação às quais a autonomia e o consentimento se manifestam insuficientes.
Nessa linha, as diretrizes éticas internacionais para a pesquisa biomédica em seres humanos do Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas definem os indivíduos vulneráveis como aqueles com capacidade ou liberdade diminuída para consentir ou abster-se de consentir.
A maior ou menor vulnerabilidade das pessoas ou países se deduzirá da presença numérica destes elementos no caso concreto; motivo por que os bioeticistas se batem pela proteção à saúde e a oferta de cuidados adequados e coletivos, por uma melhor qualidade de vida e a concentração de recursos em políticas que permitam expectativa de vida e respeito.
Hoje, perspectivada em função de uma relação social, cultural, política e econômica desigual e, como consequência de uma relação de desigualdade, a vulnerabilidade pode manifestar-se de modo individual ou coletivo, entre indivíduos, entre diferentes grupos, culturas ou etnias, ou mesmo entre países; e proteger a vulnerabilidade nas relações assimétricas é uma evidência do direito, eis que basicamente institucionalizado na forma de proteger os seres humanos vulneráveis, como no direito civil na proteção de menores e incapazes; ou no direito penal com respeito à proteção das pessoas que por condição ou circunstâncias são ou estão vulneráveis ou à penalização das intervenções arbitrárias, não consentidas.
Portanto, a vulnerabilidade manifesta uma relação assimétrica entre o fraco e o forte, o que demanda um compromisso eticamente adequado de que o mais poderoso proteja o mais fraco.
Na visão do diploma penal, a pessoa vulnerável é a que não tem qualquer possibilidade de opção, compreendendo o menor de 14 anos que não tem o necessário discernimento ou que não pode oferecer resistência.
Assim, constitui estupro de vulnerável o fato de o agente ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos, prevendo-se uma pena de 8 (oito) a 15 (quinze) anos (CP, art. 217-A, caput).
A conduta deixou de ser uma simples modalidade do tipo penal comum de estupro, para assumir a categoria de tipo penal com marca de autonomia tipológica e denominação própria, não se restringindo a mudança a um mero deslocamento do espaço normativo, mas integrou-se ao sistema uma nova infração penal; contudo, não foi feliz o legislador, pois o adjetivo (vulnerável) foi usado com função substantiva para indicar o sujeito passivo desta modalidade do crime sexual mais grave, que será sempre uma pessoa fragilizada, incapacitada física ou mentalmente; ainda o adjetivo "vulnerável" é um novo conceito penal e deve ser entendido como toda a criança ou mesmo adolescente com menos de 14 (catorze) anos; ou, ainda, como qualquer pessoa incapacitada física ou mentalmente de resistir à investida estupradora do agente criminoso.
Acrescente-se, além, que foi revogada a presunção de violência em relação a vítimas menores de 14 (catorze) anos, àquelas que o agente saiba alienadas ou débeis mentais, ou que não possam oferecer resistência, estipulando-se tipos penais autônomos com penas maiores; aparentemente, a nova redação encerra as discussões iniciadas com julgamento na Suprema Corte que adotara entendimento de que a presunção em tais crimes era relativa, ensejando prova em contrário: o laconismo do art. 217-A traz implícita a irrelevância do consentimento do ofendido quanto à prática da libidinagem, pois delito haverá mesmo com tal assentimento.
A vulnerabilidade do ofendido também define a forma de demanda, eis que nesta hipótese ou quando a vítima é menor de 18 (dezoito) anos a ação penal é pública incondicionada (CP, art. 225, parágrafo único).
Em síntese, segundo a novidadeira ótica penal constituem delitos penais contra pessoas vulneráveis os praticados contra quem tenha 14 (catorze) anos ou menos, ou aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tenham o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não possam oferecer resistência.
  
4 Conclusão
Os saberes modernos não abdicam de uma política interdisciplinar em que as especialidades se subjugam à modéstia científica, aceitando uma constante integração aonde os conceitos e conteúdos se permeiam como vasos comunicantes.
Atento aos ares de renovação e adequando-se aos protestos da sociedade que exige medidas coercitivas drásticas em busca da paz comunitária, o ordenamento criminal estende suas raízes para o solo da biociência; e dele absorve a seiva necessária para proteger o grupo dos hipossuficientes, com a importação e uso de vocábulo gerado no ventre bioético, mas vestido com as roupas da doutrina penal: a vulnerabilidade.
   

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