Aspectos Sucessórios do Dano Morte

Douglas Phillips Freitas
Advogado; Doutorando em Direito e Especialista
em Psicopedagogia; Professor de Graduação e Pós-
Graduação do CESUSC, IES/FASC, VOXLEGEM;
Coordenador das Comissões do IBDFAM/SC.
  

SUMÁRIO: 1 Dano Moral: Stricto e Lato Sensu; 2 Dano Morte; 3 Diferença do Dano Moral (Lato Sensu) e Dano Morte; 4 Tratamento Sucessório da Indenização por Dano Morte; 5 Considerações Finais.
  

Em 2005, o instituto do Dano Morte teve um dos primeiros, senão o primeiro, trabalho acadêmico publicado no Brasil por Cláudio Scarpeta Borges e, sob sua orientação, Keila Comelli Alberton, no livro Código Civil: comentado por artigos de juristas, em que protagonizei como organizador da obra.
No referido texto, os autores informaram que:
"Se uma vítima tem direito à reparação em razão de violação de sua integridade física fruto de ato culposo, não se pode admitir, até mesmo em respeito ao princípio da reparação integral, ausência deste direito quando a agressão se assoma mais violenta, decorrente da retirada do seu bem maior, que é a vida."
Em diversos países como Argentina, Uruguai, Itália, França, Japão, Líbano, China e Portugal, o Dano Morte é extremamente difundido.
"Descritores: Acidente de viação. Direito à indenização. Direito à vida. Danos morais. Sucessão. Nº do documento: SJ200506160016127. Sumário: 1. 'O direito à indenização por danos não patrimoniais sofridos pela vítima, antes de falecer, e o dano decorrente da sua perda do direito à vida, ambos em conseqüência de acidente de viação, cabe, em conjunto'. (...) os danos não patrimoniais sofridos pela vítima '(incluindo o dano morte) se transmitem por via hereditária' aos respectivos herdeiros, legítimos, conforme as disposições das leis sucessórias."
Embora não haja expresso tratamento jurídico no ordenamento pátrio, como se verá a seguir, não possui qualquer óbice em sua aplicação. Em recentes artigos publicados em livros e revistas especializados, tratei sobre a aplicação do Dano Morte em nossa realidade jurídica.
  
      
    1 Dano Moral: Stricto e Lato Sensu   
A responsabilidade civil teve o grande momento na Constituição Cidadã de 1988 que trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro o Dano Moral, instituto que anteriormente só via guarida na doutrina e noutros países.
A evolução deste dano extrapatrimonial indenizável por força do casuísmo chegou num ponto que exigiu a necessidade de individualização do direito da personalidade, a qual se compensaria pecuniariamente, pois em tempos idos não se sabia qual valor era outorgado ao Dano Moral (incolumidade psíquica: dor, sofrimento, etc.) e o Dano Estético (incolumidade física: afeamento, aleijão, etc.).
A jurisprudência há muito pacificou o entendimento, informando a possibilidade de cumular ambos os institutos que gozam de autonomia. A questão é que o texto de lei nomeia todo dano extrapatrimonial como sendo de cunho moral.
"Art. 186 (CC). Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito."
Aguiar Dias leciona que "o dano moral é o efeito não patrimonial da lesão de direito e não a própria lesão abstratamente considerada", esta terá a nomenclatura respectiva ao direito furtado.
Sabendo que o Dano Estético é um dano extrapatrimonial e que todo o dano extrapatrimonial é Dano Moral, se conclui que este é Dano Moral lato sensu que abarca todas as espécies de danos extrapatrimoniais (Danos Morais stricto sensu), nominados de acordo com o direito da personalidade que tutelam: Dano Estético, prejuízo à incolumidade física; Dano Afetivo, decorrente da relação de filiação e matrimonial (e da união estável); Dano Morte, perda do direito à vida; Dano Existencial (assédio moral ou mobbing), causado pelas injustas opressões no âmbito laboral; entre tantos outros classificados na doutrina e jurisprudência, além do próprio Dano Moral "stricto sensu", utilizado para o restante dos direitos da personalidade de cunho psíquico, como dor, sofrimento, angústia, etc. Trata-se de danos morais, mas por questões didático-jurídicas são diferentemente identificadas, pois, na prática processual, pode haver a necessidade de identificar o quantum indenizatório respectivo a cada tipo de dano moral stricto sensu.
Esta necessidade de identificar e classificar os tipos de danos morais supera a mera atividade acadêmica, tem profundo sentido prático-profissional. Clayton Reis leciona que:
"(...) a importância da proteção, no caso dos danos extrapatrimoniais, reside essencialmente no reconhecimento de que, na medida em que o julgador assegura a indenização em face dos danos morais, está ao mesmo tempo valorando os bens subjetivos que integram a personalidade da vítima."
Antigamente, quando não havia a consideração autônoma do Dano Estético e do Dano Moral (stricto sensu), numa apelação em que se provava que o aleijão ou desfiguramento não existia, os julgadores ad quem não sabiam o quanto reduzir da sentença condenatória ad quo, pois não havia sido valorado quanto fora destinado para compensação do dano estético e do dano moral.
É jurisprudência pacífica a cumulação destes danos morais stricto sensu:
"É cabível a cumulação de danos morais com danos estéticos quando, ainda que decorrentes do mesmo fato, são passíveis de identificação em separado."
  
      
    2 Dano Morte   
O Dano Morte é o dano extrapatrimonial, indenizável, decorrente da perda da vida do ser humano, reclamado e pago ao seu espólio.
A lei não expressa Dano Morte, como também não faz menção ao Dano Estético, entretanto permite a existência de ambos nas expressões "sem excluir outras reparações" ou "além de algum outro prejuízo" trazidas nos textos concernentes à morte e lesão (ou ofensa) à saúde.
"Art. 948 (CC). No caso de homicídio, a indenização consiste, 'sem excluir outras reparações':
I - no pagamento das despesas com tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família;
II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.
Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido."
Nota-se que os róis são meramente exemplificativos (numerus apertus), pois não esgotam em todo seu texto os tipos compensações aos danos sofridos. Não há óbice legal tanto para o Dano Estético quanto ao Dano Morte.
  
      
    3 Diferença do Dano Moral (Lato Sensu) e Dano Morte   
O Dano Morte encontra-se arrolado como um dos tipos de Dano Moral. Partindo-se da premissa de que o sofrimento e a dor pela perda do ente querido configuram Dano Moral stricto sensu, em que "o juiz se volta para a sintomatologia do sofrimento, que não pode ser valorado por terceiro, a fim de quantificá-lo economicamente", o Dano Morte tem seu "fundamento teleológico na perda da vida e não na dor".
O objeto do Dano Morte é a perda da vida; trata-se de indenizar aquele que morreu por meio de seu espólio, pois perdeu seu bem mais precioso. O sofrimento pela perda do ente querido e conseqüente indenização aos seus familiares é o objeto do Dano Moral (stricto sensu), conforme regra do inciso I do art. 948 da lei civil.
No Tribunal português, o entendimento manifestado nos julgados, acerca da cumulação do Dano Moral dos familiares da vítima (visando compensar a dor pela perda do ente querido) com o Dano Morte (que tem por fim indenizar o espólio, por ter o de cujus perdido a chance de viver), está consolidado na doutrina e jurisprudência lusitana:
"2957/03-1. Relator: Sénio Alves. Descritores: Homicídio por negligência. Danos morais. Danos não patrimoniais. Direito à vida. Indenização. Montante da indenização. Data do acórdão: 23.03.04. Votação: unanimidade. Decisão: provido parcialmente. Sumário: É adequado fixar em € 60.000 o montante indenizatório pela 'perda do direito à vida'. Quanto aos montantes fixados na sentença recorrida a título de reparação pelos 'danos morais sofridos pelos demandantes com a morte do seu filho': Neste campo, salvo o devido respeito por melhor opinião, não é legítimo nem sensato procurar um montante-padrão: cada pai sente, de modo e intensidade diversos, a morte de um filho (e casos há em que, ao arrepio das leis da natureza, nem sequer a sente). (...) Verdadeiramente, nada há de mais injusto e cruel que um pai perder um filho, em tudo o que isso significa de inversão de uma lei natural. (...). Presente o sofrimento profundo dos demandantes cíveis, que o tribunal recorrido deu como provado, nada temos a apontar aos montantes indenizatórios fixados (esc. 10.000.000,00, isto é, € 49.879,79, para 'cada um') a título de ressarcimento por esse dano, sendo de manter a decisão impugnada, nessa parte. São termos em que, por tudo quanto exposto fica e ao abrigo das disposições legais citadas, acordam os juízes desta Secção Criminal em conceder parcial provimento ao recurso, reduzindo para € 60.000 (sessenta mil euros) o montante indenizatório pela perda do direito à vida de C., mantendo - em tudo o mais - a douta decisão recorrida. Custas cíveis por recorrente e recorridos, na proporção de 4/5 para aquela e 1/5 para estes. Évora, 23 de março de 2004. Sénio Alves Pires da Graça."
  
      
    4 Tratamento Sucessório da Indenização por Dano Morte   
O espólio é ente despersonalizado que recebe proteção jurídica conferindo-lhe direito e "legitimidade ad causam", representando-se ativa e passivamente por intermédio do administrador provisório, ou, depois de instaurado o inventário, por pessoa do inventariante.
Entende-se por herança o conjunto dos bens deixados pelo falecido. Não confundir com espólio, que é a herança do ponto de vista processual ou formal. Até o término do inventário e partilha, "os bens formam um espólio, que é a massa, ou a universalidade dos bens" , seus direitos e deveres.
A ação por Dano Morte será proposta por aquele que administrar o espólio ou seu inventariante, sendo a indenização incorporada ao espólio. Pagas as dívidas do de cujus e ainda sobrando valor desta indenização, haverá sua partilha nos moldes da lei.
Para alguns estudiosos do Direito, a possibilidade jurídica de se cumular o Dano Moral da família e o Dano Morte da vítima pode parecer uma forma de enriquecimento sem causa aos herdeiros. Entretanto, nem sempre os familiares que perceberão indenizações pela perda do ente querido também se beneficiarão pela herança majorada por conta do valor pago ao espólio, afinal:
a) o valor da indenização poderá ser transmitido (total ou parcialmente) aos credores do de cujus nos casos em que este não deixara bens suficientes para purgar tais débitos e dependerá da indenização por Dano Morte para solvê-la;
b) os pais, cônjuges/companheiros e colaterais, que têm direito aos danos morais pela perda do ente querido, terão que respeitar a ordem sucessória para perceber o valor pago ao espólio a título de Dano Morte. Os filhos (e talvez o cônjuge pelo regime patrimonial) irão perceber o montante pago ao espólio, enquanto aqueles outros parentes nada receberão desta indenização, somente daquela.
  
Destarte estas questões, o STJ já decidiu que:
"RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO EM DECORRÊNCIA DE ACIDENTE SOFRIDO PELO DE CUJUS. LEGITIMIDADE ATIVA DO ESPÓLIO. 1. Dotado o espólio de capacidade processual, tem legitimidade ativa para postular em juízo a reparação de dano sofrido pelo 'de cujus', direito que se transmite com a herança. 2. Recurso especial conhecido e provido."
Embora a nomenclatura utilizada no decisum tenha sido Dano Moral (lato sensu), trata-se, a toda evidência, de Dano Morte. É importante ressaltar que o julgado acima não se versa sobre instituto da substituição processual (em que, depois de ingressada ação, vindo o autor a falecer, esse é substituído por seu espólio). O texto é o reconhecimento jurisprudencial da capacidade do espólio em ser pólo ativo nas ações indenizatórias que o de cujus não pôde promover em vida.
Anteriormente ficava no campo doutrinário tal capacidade do espólio. Com o advento da nova lei civil, houve regramento expresso neste sentido:
"Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau."
Embora a dicção do texto legal acima transcrito outorgue a capacidade ativa para intento da ação aos parentes passíveis de herança por força do art. 1.829 da mesma lei, tecnicamente tal capacidade deve ser feita pelo espólio através de seu representante provisório ou inventariante. A transmissibilidade do direito indenizatório também encontra guarida no direito sucessório:
"Art. 943. O direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança."
Léon Mazeaud, citado por Yussef Cahali, declara que:
"O herdeiro não sucede no sofrimento da vítima. Não seria razoável admitir-se que o sofrimento do ofendido se estendesse ao herdeiro e este, fazendo seu o sofrimento do morto, acionasse o responsável a fim de indenizar-se a dor alheia. Mas é irrecusável que o herdeiro sucede no direito de ação que o morto, quando vivo ainda, tinha contra o autor do dano.
Se o sofrimento é algo pessoal, a ação de indenização é de natureza patrimonial e, como tal, transmite-se aos herdeiros. Sem dúvida, a indenização paga ao herdeiro não apaga nem elimina o sofrimento que afligiu a vítima. Mas também é certo que, se a vítima, ela mesma, houvesse recebido uma indenização, não eliminaria igualmente a dor que houvesse padecido. O direito a uma indenização simplesmente ampliou o seu patrimônio. A indenização cumpre a sua finalidade compensatória, antes como depois do falecimento da vítima, com as mesmas dificuldades que resultam da reparação de um prejuízo moral por uma indenização pecuniária, o Dano Moral, por ser de natureza extrapatrimonial, não comunica essa particularidade à ação de indenização."
No mesmo diapasão, há outras decisões do STJ sobre a matéria:
"RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. MORTE DA VÍTIMA. LEGITIMIDADE ATIVA DO ESPÓLIO.
Na linha da jurisprudência desta Corte, o espólio detém legitimidade para suceder o autor ação de indenização por danos morais. Precedentes."
"RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO EM DECORRÊNCIA DE ACIDENTE SOFRIDO PELO DE CUJUS. LEGITIMIDADE ATIVA DO ESPÓLIO.
Dotado o espólio de capacidade processual (art. 12, V, do CPC), tem legitimidade ativa para postular em Juízo a reparação de dano sofrido pelo de cujus, direito que se transmite com a herança (art. 1.526 do Código Civil)."
"LEGITIMIDADE ATIVA DA SUCESSÃO DE PESSOA FÍSICA FALECIDA PARA BUSCAR JUDICIALMENTE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS SOFRIDOS PELO DE CUJUS.
A Sucessão (os herdeiros), e até mesmo o espólio, possuem legitimidade ativa para pleitear indenização por danos morais sofridos pelo de cujus. Precedentes inclusive do STJ."
  
      
    5 Considerações Finais   
Num mundo de valores e práticas perversas, hipoteticamente, adotando uma ótica monetarizada e cruel, o causador do dano, se houvesse como saber que o ato ilícito praticado viria inequivocamente a fatalizar a vítima, jamais a deixaria sair viva do acidente.
Raciocine, se o causador do dano vai ter que pagar inevitavelmente indenizações aos familiares pela perda do ente querido, não permitiria a possibilidade deste, durante seus momentos agonizantes, constituir procurador para propor ação indenizatória, pois correria o risco de majorar a indenização. Teria que pagar X aos familiares, mais Y ao espólio por conta da substituição processual. Neste raciocínio, o prejuízo é menor com a vítima morrendo no ato do sinistro.
O Dano Morte é indenizar o morto, independentemente de ter ou não proposto ação em vida. É compensar aquele que perdeu seu maior bem, a vida.
Não se trata de estender o direito da personalidade após seu término, que é a morte, mas buscar a reparação da lesão causada a este direito, que por ter sido tão grave ensejou o seu fim, ou seja, acreditar que não é possível buscar o Dano Morte pelo espólio é incentivar o locupletamento do causador do dano. Parece descabido à luz do sentido de eqüidade que deve proporcionar o Direito não reconhecer o direito à indenização pela perda da chance de viver, quando se reconhece tal direito nos casos de propositura de ação judicial em vida com posterior falecimento pelo ato danoso. Trata-se do que leciona o filósofo Albert Camus, de um crime de lógica, quando o raciocínio serve para justificar tudo, até para transformar assassinos em juízes.
Compensar pela perda da vida é tutelar a dignidade da pessoa humana "in totum". Giorgio Filibeck, neste sentido, é radical: a dignidade da pessoa humana ou é integral ou não é.
Sem dúvida, muito há o que se discutir sobre o tema. Neste cotidiano jurídico burocratizado que necessita da produção legislativa de forma expressa a tudo e todos, cabe ao ator jurídico interpretar as normas aqui trazidas para consolidar o Dano Morte em nosso ordenamento jurídico que em momento algum o impede de aplicá-lo ao caso concreto, resguardando os direitos individuais e promovendo maior justiça principalmente quando o objeto tutelado é a vida.
   

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