Emerson Garcia
Pós-Graduado em Ciências Políticas e Internacionais pela
Universidade de Lisboa; Mestre e Doutorando em Ciências
Jurídico-Políticas pela mesma Universidade; Consultor
Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça; Assessor
Jurídico da Associação Nacional dos Membros do
Ministério Público (CONAMP); Membro do Ministério
Público do Estado do Rio de Janeiro e da
International Association of Prosecutors
(The Hague - Holanda).
1 Aspectos Introdutórios
A interação sociopolítica entre indivíduos, grupos ou Estados, longe de ser caracterizada por uma linearidade constante, pautada por referenciais de harmonia e pacífica coexistência, tem sido historicamente marcada por posições de domínio. No plano existencial, que muitas vezes se distancia e em outras contradiz o plano idealístico-formal, a igualdade não é propriamente um valor inato e indissociável, tanto da espécie humana, como das estruturas de poder que a partir dela se formam. Em verdade, a presença de posições jurídicas dominantes tem acompanhado a própria evolução da humanidade, refletindo-se em praticamente todas as relações interpessoais e interestatais. Conquanto não se negue a sua dureza, é absolutamente realista a sentença do Marquês de Vauvenargues: "a natureza não conhece a igualdade; sua lei soberana é a subordinação e a dependência".
No direito internacional, a guerra de conquista somente foi efetivamente proscrita no início do século XX 1; em meados do mesmo século convivíamos com possessões coloniais; e, ainda hoje, Estados mais fortes subjugam princípios há muito sedimentados na sociedade internacional, fazendo uso da força em defesa de seus interesses. A recente invasão, por forças norte-americanas, dos territórios afegão e iraquiano, bem ilustra essa possibilidade; não sendo demais realçar que, até então, a denominada "legítima defesa preventiva", tese utilizada na tentativa de legitimar o uso da força, ainda não frequentara os anais dos tribunais internacionais.
No direito interno, o liberalismo clássico sedimentou dogmas cujos contornos semânticos em muito destoavam de sua projeção na realidade. A cansativa retórica da igualdade é um desses exemplos, sempre contemplada em sua plasticidade formal, mas raramente materializada em toda a sua potencialidade de expansão. Daí se afirmar que, na igualdade liberal, "todos são iguais, mas alguns são mais iguais que outros". O acerto dessa afirmação pode ser facilmente constatado com um mero passar de olhos pela ordem de valores subjacente à gênese do liberalismo, fartamente ilustrada pela revolução franco-americana.
Em terras francesas, apregoava-se uma igualdade que distinguia entre ricos e pobres, somente admitindo a participação política dos primeiros, não dos últimos. Em paragens americanas, por sua vez, a discriminação racial não só contribuiu para a eclosão da Guerra de Secessão, quase levando ao fim a Federação, como, ainda no século XX, ensejava calorosos debates em torno da política segregacionista de alguns Estados-Membros.
A igualdade, em seus aspectos mais estritos, vale dizer, aqueles que não digam respeito unicamente à inserção na humanidade, pode apresentar múltiplas variações, que acompanharão as vicissitudes do meio social (v.g., na Roma antiga, todos os cidadãos possuíam direitos políticos, mas os escravos e os bárbaros não eram considerados cidadãos). Práticas tidas como igualitárias num certo contexto sociocultural podem ser consideradas discriminatórias com o evolver do grupamento, fazendo que verdades absolutas se transmudem em relativas e daí em censuráveis equívocos.
Nesse contexto de fluxo e refluxo, a situação jurídica da mulher passou por diversas mutações na evolução do Estado de Direito, principiando por um estado de subordinação e dependência quase absoluta, até que, a partir de conquistas pontuais, mas de indiscutível relevância, tem alcançado não só a sua autonomia existencial, como a paulatina inserção nos setores mais hegemônicos do grupamento. A compreensão dessas mutações exige reflexões em torno das dimensões em que se desenvolveu a construção jurídica dos direitos da mulher, o tratamento que lhe tem sido assegurado pelo constitucionalismo contemporâneo e, a partir de um referencial de igualdade formal, a identificação da juridicidade, ou não, das medidas adotadas para coibir a discriminação de gênero e alcançar a igualdade material.
Na linha desses indicadores argumentativos, analisaremos os contornos estruturais e a compatibilidade da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, também denominada "Lei Maria da Penha", com a Constituição de 1988. A análise se faz necessária por duas razões básicas: (1) a igualdade de gênero foi incluída entre os direitos fundamentais (art. 5º, I) e (2) a Lei Maria da Penha confere um tratamento diferenciado à mulher enquanto vítima de violência doméstica, o que termina por gerar resistência em relação à aplicação de alguns de seus preceitos.
2 A Construção Jurídica dos Direitos da Mulher
A construção de um referencial de igualdade, ainda que meramente formal, sempre ensejou uma polarização dos interesses envolvidos: de um lado, os excluídos, de outro, múltiplos atores sociais, que poderíamos subdividir em: (1) hegemônicos, desejosos de manter a sua posição de primazia; (2) simpatizantes, estranhos à classe excluída, mas que reconheciam a injustiça da exclusão; e (3) indiferentes, prosélitos de seus próprios interesses e que normalmente consubstanciam a grande massa social. A partir desse quadro, o grande desafio é construir uma base axiológica que permita seja alcançado um referencial de coesão social, de modo que os componentes do grupamento vejam uns aos outros como iguais.
O pensamento cristão, por exemplo, sustenta que todos os homens são filhos de Deus, tendo a sua imagem e semelhança, o que serve de alicerce à universalidade dos direitos humanos e justifica a igualdade entre todos aqueles que aceitem a fé cristã. Como afirmou o Apóstolo Paulo, "não há judeu nem grego, não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gálatas, 3:28). Samuel Pufendorf (1632-1694), por sua vez, invocando aspectos inatos da espécie humana, também defendeu a igualdade dos homens na natureza. Qualquer que seja o referencial argumentativo utilizado, teleológico ou jusnaturalístico, a construção de uma ordem de valores igualitária é uma preocupação constante.
Mesmo Platão, escrevendo numa época em que a mulher ainda era subjugada pelo homem, apesar de reconhecer a maior robustez física deste último, era categórico ao afirmar que:
"(...) não há na administração da cidade nenhuma ocupação, meu amigo, própria da mulher, enquanto mulher, nem do homem, enquanto homem, mas as qualidades naturais estão distribuídas de modo semelhante em todos os seres, e a mulher participa de todas as atividades, de acordo com a natureza, e o homem também, conquanto em todas elas a mulher seja mais débil do que o homem."
O primeiro grande desafio enfrentado foi obter o reconhecimento normativo da igualdade jurídica entre homens e mulheres, o que certamente contribuiria para a paulatina inserção desse vetor axiológico no contexto social. Conquanto seja exato que o axiológico apresenta inegável ascendência sobre o normativo, influindo no delineamento do seu conteúdo e lhe conferindo legitimidade perante o grupamento, a alteração do quadro de dependência e subserviência da mulher somente pôde ser alterado na medida em que iniciativas isoladas assumiram ares de generalidade e, acima de tudo, imperatividade.
O liberalismo clássico apregoava a igualdade entre todos os homens, mas a mulher não era incluída sob essa epígrafe. Não é por outra razão que, na França, o célebre texto de 1789 foi denominado de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em 1791, Olympe de Gouges, que logo depois foi condenada à morte na guilhotina, apresentou, sem êxito, um projeto de Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, almejando que as conquistas da Declaração de 1789 fossem estendidas à mulher. As tentativas de inclusão sociopolítica da mulher foram uma preocupação constante no decorrer dos séculos XVIII e XIX, mas somente apresentaram um avanço significativo no decorrer do século XX. A intensidade das dificuldades enfrentadas pode ser facilmente imaginada ao constatarmos, por exemplo, que somente em 1871 o direito norte-americano começou a proibir a imposição de castigos corporais, pelo homem, à mulher, e isto apenas em alguns Estados da Federação, como Alabama e Massachussets.
Na esfera do direito internacional privado, definia-se o direito estrangeiro aplicável a partir da nacionalidade do marido. Na Alemanha, o Bundesverfassungsgericht proferiu a sua primeira sentença ab-rogativa em 22 de fevereiro de 1983, tendo decidido que "a disciplina de conflitos do art. 15, §§ 1º e 2º (segunda frase), que submete as relações patrimoniais entre os cônjuges à lei do marido, está em contraste com o art. 3º, § 2º, da GG". Em 8 de janeiro de 1985, o Tribunal reconheceu a inconstitucionalidade de norma que privilegiava a lei do marido na disciplina do divórcio. Com a reforma legislativa de 1986, as normas de conflito foram ajustadas ao princípio da igualdade e o problema superado. Na Itália, de acordo com as "Disposizioni Sulla Legge in Generale", que antecediam o Código Civil e, até a entrada em vigor da Lei nº 218, de 31 de maio de 1995 (Reforma do Sistema Italiano de Direito Internacional Privado), disciplinavam integralmente a matéria, as relações pessoais e patrimoniais entre cônjuges estavam sujeitas à lei nacional do marido, acrescendo-se que as relações entre genitor e filhos eram reguladas pela lei nacional do pai. O Tribunal Constitucional italiano, na Sentença nº 71/87, reconheceu que "as normas de direito internacional privado são sindicáveis em sede de juízo de constitucionalidade", não podendo destoar da Constituição. Quanto à questão de fundo, declarou a inconstitucionalidade parcial da segunda parte do art. 18 da "Disposizioni Sulla Legge in Generale", por violar o princípio específico da igualdade moral e jurídica entre os cônjuges e o princípio geral da igualdade perante a lei 18. Na sentença nº 477/87, o Tribunal, com base nos mesmos fundamentos, declarou a inconstitucionalidade do § 1º do art. 20 das referidas disposições.
No decorrer do século XX, o movimento feminista floresceu e os atos internacionais de proteção à mulher se multiplicaram. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, firmada no seio das Nações Unidas em 1948, teve sua denominação alterada para Declaração Universal dos Direitos Humanos; e as organizações internacionais, de cunho universal ou regional, passaram a desempenhar um relevante papel na sedimentação de uma visão cosmopolita da igualdade de gênero. No âmbito da Organização dos Estados Americanos, merecem referência: (1) a Conferência sobre Nacionalidade da Mulher, adotada em 1933 na VII Conferência Internacional Americana, realizada em Montevidéu; (2) a Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Políticos à Mulher, adotada em 1948 na IX Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá; e (3) a Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Civis à Mulher, também adotada na IX Conferência Internacional Americana. No âmbito das Nações Unidas, podemos mencionar a (1) Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada em 1979, e (2) Protocolo Facultativo a essa Convenção, adotado em 2001.
Como se constata pelo teor desses atos internacionais, a mulher, em pleno século XX, ainda lutava pelo direito de escolher a própria nacionalidade, por uma plena capacidade civil e pelo direito de participação política. No Brasil, por exemplo, somente após o advento da Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, a mulher casada deixou de ser relativamente incapaz.
A mulher, ao menos no Ocidente, parece ter conquistado a sua definitiva inserção no plano da igualdade formal, o que, se é suficiente para tranquilizar os menos exigentes, não logra êxito em afastar a infeliz constatação de que a realidade ainda é pródiga em exemplos de massivos e reiterados atos de discriminação contra a mulher. Afinal, o normativo, por maior que seja a sua plasticidade, jamais seria apto a eliminar uma longa história social de dependência e subordinação em relação ao homem.
O segundo grande desafio a ser diuturnamente enfrentado é o de transplantar a igualdade de gênero do plano meramente formal para o real, de modo que as mulheres, no curso de suas relações intersubjetivas, possam ter acesso a todos os benefícios e desempenhar as mesmas atividades asseguradas aos homens, desde, é óbvio, que os atributos físicos não assumam, legitimamente, um papel determinante no processo seletivo. A realização desses objetivos passa pelo reconhecimento formal da igualdade de gênero e alcança a adoção de medidas de inserção, conferindo-se um tratamento diferenciado à mulher de modo a compensar a posição de inferioridade que a evolução da humanidade sedimentou.
3 O Constitucionalismo Contemporâneo e a Proteção da Mulher
Costuma-se afirmar que a Constituição representa uma infindável série de escolhas, o que enseja questionamentos sobre se deve ser vista como um texto, uma intenção, uma ordem de deduções estruturais ou uma série de premissas políticas e morais. Com abstração da linha argumentativa que venha a ser seguida, não é possível subtrair da Constituição a imperatividade ou deixar de reconhecer a sua condição de "ordem suprema do Estado". Não há nenhuma norma jurídica de grau superior que lhe assegure a existência e imponha a observância, cabendo à própria ordem constitucional o fornecimento dos instrumentos que permitam a sua tutela e garantia.
Não é por outra razão que o constitucionalismo contemporâneo, mais especificamente após o segundo pós-guerra, tem se preocupado com a construção de uma ordem de valores pautada em referenciais de igualdade e dignidade. Em decorrência do histórico de adversidades, a igualdade de gênero é uma preocupação constante. A Grundgesetz alemã de 1949, por exemplo, dispõe, em seu art. 3º, que "todos os homens são iguais perante a lei. Homens e mulheres têm iguais direitos. Ninguém poderá ser prejudicado ou favorecido em razão do seu sexo (...)". A Constituição espanhola de 1978, do mesmo modo, visualiza a igualdade como um valor superior (art. 1º), reconhece o livre exercício profissional, assegurando que "em nenhum caso possa existir discriminação em razão do sexo" (art. 35) e ainda dispõe que compete aos Poderes Públicos promover as medidas necessárias, eliminando os obstáculos para que o exercício desses direitos seja viabilizado (art. 9º, 2). As Constituições italiana de 1947 (art. 3º) e brasileira de 1988 (art. 5º, I) também consagram um mandamento amplo de igualdade, vedando a distinção de sexo, mas a última delas ressalta que tal se daria nos termos prescritos na ordem constitucional. Em outras palavras, o tratamento diferenciado seria possível desde que harmônico com as normas constitucionais. Prescrições dessa natureza, é importante frisar, desempenham um papel de cunho mais diretivo, que propriamente restritivo. Em outras palavras, o tratamento diferenciado, ainda que não haja norma autorizadora expressa, sempre será possível, bastando seja demonstrada a presença de características distintas, intensas o suficiente para justificar um tratamento igualmente distinto.
O que se vislumbra na Constituição brasileira de 1988 é a existência de (1) um mandamento geral de igualdade (art. 5º, caput - "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]"); (2) um mandamento específico de igualdade de gênero (Art. 5º, I - "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações [...]"); e (3) uma cláusula de remissão, indicando a possibilidade de tratamento constitucional diferenciado (Art. 5º, II - "[...] nos termos desta Constituição"). Essa última cláusula mostra-se coerente com o sistema na medida em que a igualdade total entre homens e mulheres é expressamente excepcionada pelo próprio texto constitucional, ao contemplar, por exemplo, a necessidade de proteção do mercado de trabalho da mulher (v.g., art. 7º, XX) e a aposentadoria das mulheres com menor tempo de contribuição previdenciária (art. 40, § 1º, III, a e b). A análise desses dois comandos constitucionais permite concluir que a razão de ser do primeiro está na histórica exclusão da mulher do mercado de trabalho, o que exige a adoção de medidas protecionistas pelo Poder Público; o segundo, por sua vez, é diretamente influenciado por componentes (1) orgânicos, vale dizer, a menor resistência física da mulher, e (2) sociais, isto por ser comum o acúmulo de atividades, vale dizer, exercidas gratuitamente no lar e onerosamente no ambiente de trabalho.
Além das situações expressamente contempladas no texto constitucional, o tratamento diferenciado, em prol das mulheres, apresentará indiscutível juridicidade em sendo possível demonstrar que uma aparente discriminação formal busca, em verdade, alcançar a igualdade material.
4 As Noções de Igualdade e Discriminação
No plano normativo, apregoar a igualdade é estruturar uma sociedade onde todos estejam seguros e tenham sua condição humana reconhecida. Nessa linha, a existência de referenciais de análise que possuam a mesma essência é requisito indispensável a qualquer construção normativa relacionada à igualdade de direitos e deveres. Exige-se, assim, uma aferição comparativa, permitindo seja identificado em que medida as semelhanças se manifestam e quais os bônus ou ônus delas decorrentes. Para tanto, é necessário isolar as características relevantes, decisivas e umbilicalmente conectadas a uma dada consequência jurídica, o que pressupõe a correta identificação dos objetivos da norma, e proceder à comparação. O equívoco na individualização dessas características ou a incorreta associação entre característica e consequência jurídica, conferindo demasiada importância a um aspecto destituído de toda e qualquer relevância, certamente conduzirão a uma manifesta injustiça. Identificada a não uniformidade das características relevantes, será evidente a correção do tratamento diferenciado, conclusão que, à evidência, não afasta a necessidade de juízos valorativos extremamente delicados em relação à justa medida desse tratamento diferenciado, o que exigirá o emprego de um critério de proporcionalidade.
A simples constatação de que um indivíduo pertence à espécie humana, conquanto demonstre uma igualdade de essência, não afasta a possibilidade de, em círculos mais estreitos de análise, serem identificadas dissonâncias que justifiquem o tratamento diferenciado. Nesse particular, a neutralidade do Estado, elemento característico do laissez faire que direcionava o liberalismo clássico, somente se harmoniza com a denominada igualdade perante a lei, sendo vedada a outorga de posições jurídicas favoráveis a indivíduos ou grupos, ainda que notória a sua posição de inferioridade no contexto sociopolítico. O liberalismo clássico ainda apresentava um especial modo de ver e entender a "essência igualitária", legitimando, por exemplo, a discriminação racial e a discriminação de gênero, isto em razão de uma pseudo-superioridade do branco em relação ao negro e do homem em relação à mulher. A fórmula da igualdade geral, conquanto prevista pela ordem jurídica, era interpretada de modo a excluir certos grupos, como os negros e as mulheres. A Constituição brasileira de 1824 é um exemplo singular dessa igualdade seletiva, pois, num período em que a mulher estava sob o jugo do homem e o negro atado aos grilhões da senzala, o seu art. 179, XIII, com inegável plasticidade, dispunha que "a lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue".
A evolução da humanidade demonstrou o desacerto da tese de que certos grupos não seriam abrangidos pela fórmula da igualdade geral. Ocorre que a mera igualdade formal pouco a pouco se mostrou absolutamente inócua, já que incapaz de transpor o plano semântico e alcançar a realidade. Apesar de todos receberem o mesmo tratamento legal e o Estado não estar autorizado a introduzir discriminações arbitrárias, nem todos gozavam das mesmas oportunidades de inserção social. Assim, de modo correlato ao sentido clássico das discriminações, que assume contornos negativos ou de exclusão, assume indiscutível relevância o seu sentido positivo ou de inclusão, que se disseminou a partir da primeira metade do século XX. Nesse período, o pensamento jurídico-político apercebeu-se que a simples igualdade perante a lei, sem discriminações atentatórias à dignidade humana, não seria apta, por si só, a estabelecer uma igualdade real. Em outras palavras, afirmar que o miserável é igual ao rico ou que, numa sociedade historicamente segregacionista, o negro, doravante, passaria a ser igual ao branco, não tem o condão de gerar qualquer benefício real para as pessoas que se encontrassem em situação de inferioridade. Significa, tão-somente, que, perante os olhos da lei, todos são iguais. Esse tipo de igualdade, no entanto, em nada influi sobre as forças sociais que traçam os contornos da realidade. Na conhecida crítica de Anatole France, "a lei proíbe, tanto o rico como o pobre, de viver debaixo das pontes, de pedir nas ruas e de roubar".
A pura e simples inclusão, sob uma fórmula geral de igualdade, de grupos historicamente discriminados em decorrência de certos referenciais socioculturais, por si só, pode vir a refletir uma forma de discriminação. A partir dessa constatação, a doutrina norte-americana desenvolveu a "doutrina do impacto desproporcional" (disparate impact doctrine), construção teórica que busca demonstrar o impacto desproporcional que a norma geral pode ocasionar sobre certos grupos que não ostentam, de fato, uma posição de igualdade. A Suprema Corte encampou essa linha argumentativa no leading case Griggs vs. Duke Power Co. A ação foi ajuizada por um grupo de pessoas negras em face da Duke Power Co., empresa de energia elétrica que historicamente somente admitia os negros para o desempenho de funções subalternas, sendo arguida a ilicitude do "teste de inteligência" utilizado como critério de promoção. Argumentavam os autores da ação que esse requisito aparentemente igualitário, ao exigir a aprovação numa prova escrita, ao invés da tradicional apresentação de certificados escolares, terminaria por perpetuar o status quo, já que os negros, por terem estudado em escolas segregadas, não poderiam competir em igualdade de condições com os brancos. Em sua decisão, reconheceu a Corte que o "teste de inteligência", conquanto lícito, não se harmonizava com um referencial de igualdade material, pois, estatisticamente, não se mostrava apto a indicar a maior eficiência profissional para fins de promoção, podendo "'congelar' o status quo de práticas empregatícias discriminatórias do passado".
Desenvolveu-se, assim, o entendimento de que a igualdade, como parte integrante e indissociável do ideal de justiça, somente seria alcançada com a adoção de medidas efetivas, não meramente formais, que permitissem a sua efetiva implementação, não mera contemplação. Seria necessário transitar da igualdade formal para a igualdade material. O artificialismo da igualdade formal entra em refluxo, o dogma da neutralidade estatal é repensado e o pensamento jurídico-filosófico passa a ser direcionado à materialização da igualdade substancial, ontologicamente calcada na inserção social, e ao oferecimento de oportunidades para o livre desenvolvimento da personalidade. É com esse objetivo que surgem e se desenvolvem as denominadas ações afirmativas, fruto do pensamento político norte-americano e que buscam eliminar, ou ao menos diminuir, as desigualdades sociais que assolam certos grupos (v.g., as mulheres e os afrodescendentes).
5 A Ratio das Ações Afirmativas e a Lei Maria da Penha
Situações de igualdade formal e de igualdade material estão normalmente articuladas com posições diametralmente opostas aos valores que apregoam. Numa sociedade capitalista, de contornos essencialmente liberais, em que a livre iniciativa e o sistema de mérito são levados a posições extremas, não será incomum constatarmos a presença, no plano jurídico, de uma igualdade formal e, no plano fático, de uma flagrante desigualdade material. Iguais na lei, desiguais na realidade. Por outro lado, presente a preocupação com a igualdade material, será ela inevitavelmente acompanhada de uma desigualdade formal, já que a lei veiculará discriminações positivas com o objetivo de atenuar a real posição de inferioridade de certos grupos. Desiguais na lei, tendencialmente iguais na realidade. Fala-se em tendencialmente iguais na medida em que a lei, ainda que sistêmica e finalisticamente imbuída dos melhores propósitos, normalmente só terá êxito na atenuação das diferenças, não na sua total supressão.
Sobre o argumento de que as ações afirmativas terminariam por violar a cláusula de igual proteção (equal protection clause), observa Ronald Dworkin que essa cláusula não assegura que cada cidadão receba igual benefício de cada decisão política, mas, apenas, que será tratado como um igual, com igual interesse e respeito no processo político de deliberação. Essa linha argumentativa, apesar de ter objetivos opostos, apresenta certa semelhança com a construção de Edmund Burke (1729-1797), que defendia o direito de todo homem a uma porção justa de tudo o que a sociedade, a partir da combinação de sua força e habilidade, podia fazer em seu favor, acrescendo que "nessa participação todos os homens têm iguais direitos, mas não a coisas iguais". Em decorrência disso, ainda segundo Burke, aqueles que contribuíssem mais deveriam receber mais: era a tônica do Estado Liberal.
Ao adotar uma política pública em benefício de um grupo específico, o Estado não promove qualquer afronta aos direitos dos demais membros da coletividade, isto porque não seria necessário disponibilizar-lhes aquilo que já possuíam ou estava ao seu alcance possuir. Violação à igualdade haveria se o mesmo benefício fosse oferecido aos que estão na posição 0 e na posição +1. À simplicidade dessa constatação, no entanto, contrapõe-se a premissa de que a atuação estatal é vocacionada à satisfação do bem comum, e este nem sempre se confundirá com os interesses do grupo a que se atribuiu preeminência. A análise, assim, há de assumir proporções mais amplas, incursionando, igualmente, nos aspectos negativos da atuação estatal, mais especificamente nos efeitos que a priorização de uma dada política pública causará em relação aos interesses de outros grupos igualmente representativos. Em tempos de escassez, em que "escolhas trágicas" são uma constante, é necessário redobrado cuidado para que "ações afirmativas" não se transmudem em "ações negativas".
A Lei nº 11.340/06, como se constata pelo teor de sua ementa, "cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências". São indicados, assim, (1) os objetivos, (2) os destinatários da proteção e (3) os fundamentos de justificação e de validade da lei.
Principiando pelos objetivos, observa-se a preocupação em criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar, providência salutar na medida em que contribui para a preservação da família, fator indispensável ao saudável desenvolvimento humano e à formação de um Estado forte e coeso. A primeira dificuldade, no entanto, reside na opção de manter adstrita às mulheres a proteção dispensada pela Lei nº 11.340/06. Na medida em que a Constituição brasileira possui uma cláusula geral de igualdade de gênero e a norma constitucional programática de coibição à violência doméstica não é direcionada exclusivamente à mulher, questiona-se: a Lei nº 11.340/06 é constitucional?
A resposta a essa proposição inicial é especialmente relevante ao constatarmos que raras são as vozes que se insurgem contra a inconstitucionalidade da lei em sua totalidade, mas, tanto na doutrina como na jurisprudência, múltiplas são aquelas que, com fundamento na cláusula geral de igualdade de gênero, advogam a inconstitucionalidade de algumas normas que atribuem uma posição jurídica desfavorável ao homem que pratica, nas relações familiares e domésticas, um ilícito contra a mulher. Essa constatação, como se percebe, bem demonstra a fragilidade da tese. Afinal, se a igualdade de gênero veda seja dispensado tratamento desfavorável ao homem que pratique um ilícito contra a mulher, por identidade de razões, haveria de ser vedada a edificação de um diploma normativo integralmente voltado à proteção da mulher, como sói ser a Lei nº 11.340/06. Essa linha argumentativa, no entanto, não encontra maior ressonância nos críticos pela singela razão de que a mulher, historicamente, é discriminada pelas leis e pela sociedade, isto em razão da posição hegemônica mantida pelo homem. Como desdobramento dessas premissas, é possível afirmar que a inconstitucionalidade, acaso sustentada, há de se abeberar em fontes outras que não a cláusula geral de igualdade.
Uma norma de conduta, qualquer que seja ela, não é um corpo estranho à realidade. Pelo contrário, a norma, lembrando a metódica concretista de Friedrich Müller, é obtida a partir da interpretação do programa normativo (rectius: o texto) à luz do seu âmbito de aplicação (rectius: a realidade). A Lei nº 11.340/06 é endereçada à mulher justamente por ser ela, como vítima principal e quase que exclusiva da violência doméstica (lembre-se que os idosos, bem como as crianças e os adolescentes, já contam com proteção específica), a destinatária da norma resultante da interpretação do § 8º do art. 226 da Constituição de 1988.
Além de não destoar da ordem constitucional em seus aspectos mais gerais, únicos analisados até aqui, a Lei nº 11.340/06 busca concretizar os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, mais especificamente na (1) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará, de 1994; e na já mencionada (2) Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada em 1979 no âmbito da Organização das Nações Unidas. A última Convenção, como deflui de sua denominação, é essencialmente voltada à eliminação da discriminação contra a mulher, tanto no setor público, como no privado, ressaltando que "a adoção pelos Estados-Partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma estabelecida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como consequência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados" (art. 4º). A Convenção Interamericana, por sua vez, dispõe que os Estados-Partes devem empenhar-se em "tomar todas as medidas apropriadas, incluindo medidas de tipo legislativo, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes, ou para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência ou a tolerância da violência contra a mulher" (art. 7º, d). Essas convenções, como se percebe, demonstram uma efetiva preocupação com a alteração da realidade, não se contentando com a mera plasticidade formal de disposições normativas alegadamente igualitárias. A mulher deve ser igual ao homem e a violência praticada contra ela deve ser coibida, não apenas na lei, mas na realidade.
6 As Ações Afirmativas Adotadas pela Lei Maria da Penha
Principiando pela juridicidade das ações afirmativas, a primeira dificuldade reside em individualizar os grupos destinatários dessas discriminações positivas, o que exige reflexões em torno do contexto social e das razões históricas que contribuíram para a sua formação. Escolhas equivocadas, privilegiando aqueles que não deveriam ser privilegiados, podem redundar numa instabilidade social, deflagrando e institucionalizando desigualdades, não combatendo-as. Fatores econômicos e raciais são constantemente invocados, sendo reflexo da própria movimentação das forças sociais.
As ações afirmativas fazem que a igualdade inata, presente pela só condição de ser humano, ceda lugar a uma igualdade construída, de modo a assegurar a sua materialização na realidade e a concretização de certos padrões de justiça material. Esses padrões, por sua vez, refletem os valores comuns à ordem constitucional, que direcionam qualquer processo de normatizaçãoou de execução normativa. É o caso dos incisos I e III do art. 3º da Constituição de 1988, que dispõem serem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil "construir uma sociedade livre, justa e solidária", bem como "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais". Esses preceitos podem ser considerados o epicentro axiológico de qualquer ação afirmativa promovida em território brasileiro, direcionando a adoção de políticas públicas aptas à consecução dos objetivos neles referidos. Especificamente em relação à mulher, tem-se uma sistemática constitucional sensível à sua histórica situação de dependência e subordinação, justificando os tratamentos diferenciados que ela diretamente contemplou e permitindo que o legislador infraconstitucional venha a ampliá-los, sempre pautado pela base axiológica que dá sustentação às medidas de proteção e inserção da mulher.
Individualizados os destinatários e o objetivo fundamental, devem ser escolhidos os instrumentos a serem utilizados para alcançá-lo. As discriminações positivas refletem a essência das ações afirmativas, que apresentam natureza e objetivos extremamente variáveis. Podem assumir natureza legislativa ou administrativa e normalmente têm por objetivo assegurar (1) a igualdade de oportunidades, permitindo que certos grupos tenham plena possibilidade de desenvolver suas aptidões (v.g., reserva de vagas em universidades), (2) a concessão de prestações sociais mínimas e indispensáveis à preservação da dignidade humana (v.g., saúde e educação básica) ou (3) a concessão, ampla e irrestrita, de forma igualitária, de todas as prestações sociais necessárias ao indivíduo (v.g., direitos sociais nos antigos regimes socialistas). São exemplos corriqueiros a garantia de acesso a serviços e a bens considerados essenciais ao pleno desenvolvimento da personalidade ou à própria sobrevivência (v.g., ingresso no ensino superior, programas assistenciais de distribuição de recursos e alimentos etc.). A medida dessas prestações, em regra, oscilará entre prestações mínimas, indispensáveis à existência digna, e prestações voltadas ao nivelamento social, de modo a igualar os membros da coletividade. Essa última possibilidade, no entanto, apresenta um acentuado colorido teórico, pois destoa de qualquer sistema baseado no livre desenvolvimento e no mérito pessoal, isto sem olvidar a notória escassez de recursos.
No direito brasileiro, são múltiplas as iniciativas voltadas à construção da igualdade material, sendo normalmente utilizados, como critérios de individualização dos destinatários, (1) a cor, (2) o sexo, (3) a deficiência física e (4) a deficiência econômica. Podem ser mencionados, no plano federal: a) o Programa Diversidade na Universidade, que dispõe sobre a concessão de incentivos a organizações não-governamentais voltadas à preparação de jovens carentes para o vestibular (Lei nº 10.558/02); b) o Programa Universidade para Todos, que trata da concessão de bolsas de estudos no ensino superior (Lei nº 11.096/05); c) a reserva de vagas aos portadores de deficiência nos concursos públicos (CR/88, art. 37, VIII; e Lei nº 8.112/90, art. 5º, § 2º); e d) a reserva de vagas a candidatas do sexo feminino nas eleições (Lei nº 9.504/97, art. 10, § 3º).
Centrando nossa análise na Lei nº 11.340/06, é possível visualizar a utilização de quatro ordens de medidas, que são as de (1) inserção, (2) prevenção, (3) proteção e (4) coibição.
As medidas de inserção, que, além de não constituírem o principal objetivo da lei, assumem contornos essencialmente programáticos, estando condicionadas à adoção de políticas públicas específicas, buscam assegurar oportunidades e facilidades à mulher, com a correlata garantia de direitos essenciais a uma vida digna.
As medidas de prevenção variam desde a integração operacional dos órgãos governamentais que atuam nos casos de violência doméstica (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Polícia Judiciária etc.), passando pela adoção de medidas que permitam monitorar a intensidade e frequência com que os ilícitos são praticados (v.g., com a realização de estudos estatísticos), até alcançar as providências voltadas à formação de uma nova identidade sociocultural para o povo brasileiro, com o efetivo respeito pela mulher.
No âmbito das medidas de proteção, tem-se (1) aquelas especificamente direcionadas à esfera jurídica da mulher, vítima da violência doméstica, que deve receber todo o auxílio necessário à garantia de sua integridade física e mental, sendo-lhe assegurada, quando necessário, proteção policial, e, dentre outros, o direito de ser acompanhada para a retirada dos seus pertences do local da ocorrência; e (2) aquelas direcionadas à esfera jurídica do ofensor, isto com o objetivo de assegurar a proteção da ofendida, podendo assumir múltiplas formas, como o afastamento do lar e a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, medida drástica e que deve ser aplicada com muita cautela, isto em razão do seu potencial de desintegração da família.
Por último, temos as medidas de coibição, sendo enquadradas sob essa epígrafe aquelas que não ostentam cunho propriamente cautelar (v.g., afastamento do lar) e que estão direta ou indiretamente relacionadas à punição do infrator pelo ilícito que praticou. Essas medidas têm sido objeto de alguma polêmica em relação à sua constitucionalidade, em especial aquelas contempladas nos arts. 17, 33, parágrafo único, e 41 da Lei nº 11.340/06. Eis o seu inteiro teor:
"Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.
(...)
Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.
Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput.
(...)
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995."
À luz desses preceitos, constata-se uma evidente preocupação com a celeridade dos processos relativos à violência doméstica e a não incidência de algumas medidas despenalizadoras, em especial daquelas contempladas na Lei nº 9.099/95, como a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89). Aqueles que apregoam a inconstitucionalidade desses preceitos argumentam com a violação à cláusula geral de igualdade na medida em que a mesma infração penal, pelo só fato de ter sido praticada contra a mulher, sujeitaria o agente a consequências jurídicas mais severas. Trata-se, no entanto, de argumento superficial, que "ao mais leve sopro se espalha e desvanece", isto para lembrarmos as belas palavras de Raul Pompéia no monumental O Ateneu.
Inicialmente, observa-se que o estabelecimento de penalidades mais severas em razão da especial qualidade da vítima não é algo novo no direito brasileiro. Nesse sentido, nosso Código Penal, em sua versão original, de 1940, já previa, como circunstâncias agravantes, a prática de crime contra "ascendente, descendente, irmão ou cônjuge", bem como contra "criança, velho ou enfermo" (art. 44, II, f e i). No primeiro caso, argumentava Aníbal Bruno, a agravante decorria da "grave manifestação de insensibilidade moral dada pelo agente"; no segundo, da "covardia e impiedade do autor, que agiu sem atenção à situação pessoal da vítima". Roberto Lyra, por sua vez, realçava que a qualidade das vítimas refletia, em relação ao autor, "manifestações negativas da personalidade". A técnica, que já ornava o Código Criminal de 1890, foi preservada na nova Parte Geral, em vigor desde 1984 (art. 61, II, e e h). Embora atentos ao risco de nos alongarmos em questões de inegável obviedade, não devemos esquecer que a qualidade da vítima também tem sido considerada para a configuração de crime específico ou como causa especial de aumento de pena, como ocorre, de longa data, com os crimes praticados contra criança (art. 121, § 4º, parte final, e 129, § 7º, ambos do Código Penal) e, por força da Lei nº 11.340/06 (art. 44), também em decorrência da violência doméstica (art. 129, § 9º, do Código Penal). Ao que sabemos, a inconstitucionalidade desses preceitos nunca foi suscitada ou, se foi, não auferiu maior publicidade.
Do mesmo modo que a pena cominada pode ser exasperada, não vislumbramos qualquer óbice a que o legislador, lastreado em motivos harmônicos com a realidade e o sistema social, venha a restringir a aplicação de certos institutos processuais de modo a agravar a situação jurídica daqueles que pratiquem crimes contra pessoas que se encontrem em evidente situação de fragilidade no contexto social.
A violência doméstica praticada contra a mulher é fato que não pode ser desconsiderado e, muito menos, ignorado. Fruto de uma sociedade desenvolvida sobre alicerces patriarcais, a sua situação de inferioridade (fática), ainda presente em muitos rincões do nosso país, é justificativa não só plausível, como suficiente à defesa da legitimidade da técnica legislativa adotada. Ressalte-se, no entanto, que o tratamento diferenciado por razões de gênero somente deve ser admitido naqueles casos em que encontre ressonância em situações de discriminação pré-existentes, não como mola propulsora dessas discriminações. A Suprema Corte norte-americana, por exemplo, no caso Mississippi University for Women vs. Hogan , reconheceu a inconstitucionalidade da política de admissão de alunos praticada por Faculdade de Enfermagem, à época beneficiada por subsídios financeiros de origem pública, por só permitir o acesso de mulheres; isto porque a discriminação não buscava atender nenhum "importante objetivo governamental".
Considerando que as ações afirmativas têm por objetivo reduzir ou suprimir as desigualdades sociais e regionais, que se manifestam entre pessoas do mesmo âmbito social ou entre sociedades de distintas regiões do país, é intuitivo que cessarão ou serão paulatinamente reduzidas tão logo as desigualdades sejam eliminadas ou atenuadas. Ressalvadas as hipóteses em que alicerçadas em situações de inferioridade inerentes à própria espécie humana, invariáveis e imutáveis, como se verifica com a fragilidade de crianças e idosos, as ações afirmativas sempre serão temporárias; isto sob pena de se inaugurar um novo quadro de desigualdade, com atores diversos, tão logo cesse a desigualdade que, de início, se buscava combater. Daí a relevância dos estudos e dados estatísticos referidos na Lei nº 11.340/06, permitindo seja acompanhada a situação da mulher enquanto vítima de violência doméstica, o que pode justificar, ou não, a manutenção da sistemática inaugurada por esse diploma legal.
Epílogo
O delineamento da igualdade passa pela (1) definição da igualdade formal do modo mais amplo possível, (2) contenção da discriminação, punindo-se as iniciativas que atentem contra a igualdade formal e (3) construção da igualdade material. Especificamente em relação à situação da mulher enquanto vítima da violência doméstica, a reversão desse quadro somente será alcançada com a alteração dos padrões histórico-culturais há muito sedimentados na sociedade brasileira, o que exigirá a implementação de políticas públicas voltadas ao esclarecimento e à formação das novas gerações. O grande desafio é evitar que a constatação de German Proverb, ao afirmar que "a única igualdade real está no cemitério", assuma ares de sacralidade e tenha sua imutabilidade reconhecida, terminando por manter a mulher na triste condição de estereótipo da violência doméstica.
Pós-Graduado em Ciências Políticas e Internacionais pela
Universidade de Lisboa; Mestre e Doutorando em Ciências
Jurídico-Políticas pela mesma Universidade; Consultor
Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça; Assessor
Jurídico da Associação Nacional dos Membros do
Ministério Público (CONAMP); Membro do Ministério
Público do Estado do Rio de Janeiro e da
International Association of Prosecutors
(The Hague - Holanda).
1 Aspectos Introdutórios
A interação sociopolítica entre indivíduos, grupos ou Estados, longe de ser caracterizada por uma linearidade constante, pautada por referenciais de harmonia e pacífica coexistência, tem sido historicamente marcada por posições de domínio. No plano existencial, que muitas vezes se distancia e em outras contradiz o plano idealístico-formal, a igualdade não é propriamente um valor inato e indissociável, tanto da espécie humana, como das estruturas de poder que a partir dela se formam. Em verdade, a presença de posições jurídicas dominantes tem acompanhado a própria evolução da humanidade, refletindo-se em praticamente todas as relações interpessoais e interestatais. Conquanto não se negue a sua dureza, é absolutamente realista a sentença do Marquês de Vauvenargues: "a natureza não conhece a igualdade; sua lei soberana é a subordinação e a dependência".
No direito internacional, a guerra de conquista somente foi efetivamente proscrita no início do século XX 1; em meados do mesmo século convivíamos com possessões coloniais; e, ainda hoje, Estados mais fortes subjugam princípios há muito sedimentados na sociedade internacional, fazendo uso da força em defesa de seus interesses. A recente invasão, por forças norte-americanas, dos territórios afegão e iraquiano, bem ilustra essa possibilidade; não sendo demais realçar que, até então, a denominada "legítima defesa preventiva", tese utilizada na tentativa de legitimar o uso da força, ainda não frequentara os anais dos tribunais internacionais.
No direito interno, o liberalismo clássico sedimentou dogmas cujos contornos semânticos em muito destoavam de sua projeção na realidade. A cansativa retórica da igualdade é um desses exemplos, sempre contemplada em sua plasticidade formal, mas raramente materializada em toda a sua potencialidade de expansão. Daí se afirmar que, na igualdade liberal, "todos são iguais, mas alguns são mais iguais que outros". O acerto dessa afirmação pode ser facilmente constatado com um mero passar de olhos pela ordem de valores subjacente à gênese do liberalismo, fartamente ilustrada pela revolução franco-americana.
Em terras francesas, apregoava-se uma igualdade que distinguia entre ricos e pobres, somente admitindo a participação política dos primeiros, não dos últimos. Em paragens americanas, por sua vez, a discriminação racial não só contribuiu para a eclosão da Guerra de Secessão, quase levando ao fim a Federação, como, ainda no século XX, ensejava calorosos debates em torno da política segregacionista de alguns Estados-Membros.
A igualdade, em seus aspectos mais estritos, vale dizer, aqueles que não digam respeito unicamente à inserção na humanidade, pode apresentar múltiplas variações, que acompanharão as vicissitudes do meio social (v.g., na Roma antiga, todos os cidadãos possuíam direitos políticos, mas os escravos e os bárbaros não eram considerados cidadãos). Práticas tidas como igualitárias num certo contexto sociocultural podem ser consideradas discriminatórias com o evolver do grupamento, fazendo que verdades absolutas se transmudem em relativas e daí em censuráveis equívocos.
Nesse contexto de fluxo e refluxo, a situação jurídica da mulher passou por diversas mutações na evolução do Estado de Direito, principiando por um estado de subordinação e dependência quase absoluta, até que, a partir de conquistas pontuais, mas de indiscutível relevância, tem alcançado não só a sua autonomia existencial, como a paulatina inserção nos setores mais hegemônicos do grupamento. A compreensão dessas mutações exige reflexões em torno das dimensões em que se desenvolveu a construção jurídica dos direitos da mulher, o tratamento que lhe tem sido assegurado pelo constitucionalismo contemporâneo e, a partir de um referencial de igualdade formal, a identificação da juridicidade, ou não, das medidas adotadas para coibir a discriminação de gênero e alcançar a igualdade material.
Na linha desses indicadores argumentativos, analisaremos os contornos estruturais e a compatibilidade da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, também denominada "Lei Maria da Penha", com a Constituição de 1988. A análise se faz necessária por duas razões básicas: (1) a igualdade de gênero foi incluída entre os direitos fundamentais (art. 5º, I) e (2) a Lei Maria da Penha confere um tratamento diferenciado à mulher enquanto vítima de violência doméstica, o que termina por gerar resistência em relação à aplicação de alguns de seus preceitos.
2 A Construção Jurídica dos Direitos da Mulher
A construção de um referencial de igualdade, ainda que meramente formal, sempre ensejou uma polarização dos interesses envolvidos: de um lado, os excluídos, de outro, múltiplos atores sociais, que poderíamos subdividir em: (1) hegemônicos, desejosos de manter a sua posição de primazia; (2) simpatizantes, estranhos à classe excluída, mas que reconheciam a injustiça da exclusão; e (3) indiferentes, prosélitos de seus próprios interesses e que normalmente consubstanciam a grande massa social. A partir desse quadro, o grande desafio é construir uma base axiológica que permita seja alcançado um referencial de coesão social, de modo que os componentes do grupamento vejam uns aos outros como iguais.
O pensamento cristão, por exemplo, sustenta que todos os homens são filhos de Deus, tendo a sua imagem e semelhança, o que serve de alicerce à universalidade dos direitos humanos e justifica a igualdade entre todos aqueles que aceitem a fé cristã. Como afirmou o Apóstolo Paulo, "não há judeu nem grego, não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gálatas, 3:28). Samuel Pufendorf (1632-1694), por sua vez, invocando aspectos inatos da espécie humana, também defendeu a igualdade dos homens na natureza. Qualquer que seja o referencial argumentativo utilizado, teleológico ou jusnaturalístico, a construção de uma ordem de valores igualitária é uma preocupação constante.
Mesmo Platão, escrevendo numa época em que a mulher ainda era subjugada pelo homem, apesar de reconhecer a maior robustez física deste último, era categórico ao afirmar que:
"(...) não há na administração da cidade nenhuma ocupação, meu amigo, própria da mulher, enquanto mulher, nem do homem, enquanto homem, mas as qualidades naturais estão distribuídas de modo semelhante em todos os seres, e a mulher participa de todas as atividades, de acordo com a natureza, e o homem também, conquanto em todas elas a mulher seja mais débil do que o homem."
O primeiro grande desafio enfrentado foi obter o reconhecimento normativo da igualdade jurídica entre homens e mulheres, o que certamente contribuiria para a paulatina inserção desse vetor axiológico no contexto social. Conquanto seja exato que o axiológico apresenta inegável ascendência sobre o normativo, influindo no delineamento do seu conteúdo e lhe conferindo legitimidade perante o grupamento, a alteração do quadro de dependência e subserviência da mulher somente pôde ser alterado na medida em que iniciativas isoladas assumiram ares de generalidade e, acima de tudo, imperatividade.
O liberalismo clássico apregoava a igualdade entre todos os homens, mas a mulher não era incluída sob essa epígrafe. Não é por outra razão que, na França, o célebre texto de 1789 foi denominado de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em 1791, Olympe de Gouges, que logo depois foi condenada à morte na guilhotina, apresentou, sem êxito, um projeto de Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, almejando que as conquistas da Declaração de 1789 fossem estendidas à mulher. As tentativas de inclusão sociopolítica da mulher foram uma preocupação constante no decorrer dos séculos XVIII e XIX, mas somente apresentaram um avanço significativo no decorrer do século XX. A intensidade das dificuldades enfrentadas pode ser facilmente imaginada ao constatarmos, por exemplo, que somente em 1871 o direito norte-americano começou a proibir a imposição de castigos corporais, pelo homem, à mulher, e isto apenas em alguns Estados da Federação, como Alabama e Massachussets.
Na esfera do direito internacional privado, definia-se o direito estrangeiro aplicável a partir da nacionalidade do marido. Na Alemanha, o Bundesverfassungsgericht proferiu a sua primeira sentença ab-rogativa em 22 de fevereiro de 1983, tendo decidido que "a disciplina de conflitos do art. 15, §§ 1º e 2º (segunda frase), que submete as relações patrimoniais entre os cônjuges à lei do marido, está em contraste com o art. 3º, § 2º, da GG". Em 8 de janeiro de 1985, o Tribunal reconheceu a inconstitucionalidade de norma que privilegiava a lei do marido na disciplina do divórcio. Com a reforma legislativa de 1986, as normas de conflito foram ajustadas ao princípio da igualdade e o problema superado. Na Itália, de acordo com as "Disposizioni Sulla Legge in Generale", que antecediam o Código Civil e, até a entrada em vigor da Lei nº 218, de 31 de maio de 1995 (Reforma do Sistema Italiano de Direito Internacional Privado), disciplinavam integralmente a matéria, as relações pessoais e patrimoniais entre cônjuges estavam sujeitas à lei nacional do marido, acrescendo-se que as relações entre genitor e filhos eram reguladas pela lei nacional do pai. O Tribunal Constitucional italiano, na Sentença nº 71/87, reconheceu que "as normas de direito internacional privado são sindicáveis em sede de juízo de constitucionalidade", não podendo destoar da Constituição. Quanto à questão de fundo, declarou a inconstitucionalidade parcial da segunda parte do art. 18 da "Disposizioni Sulla Legge in Generale", por violar o princípio específico da igualdade moral e jurídica entre os cônjuges e o princípio geral da igualdade perante a lei 18. Na sentença nº 477/87, o Tribunal, com base nos mesmos fundamentos, declarou a inconstitucionalidade do § 1º do art. 20 das referidas disposições.
No decorrer do século XX, o movimento feminista floresceu e os atos internacionais de proteção à mulher se multiplicaram. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, firmada no seio das Nações Unidas em 1948, teve sua denominação alterada para Declaração Universal dos Direitos Humanos; e as organizações internacionais, de cunho universal ou regional, passaram a desempenhar um relevante papel na sedimentação de uma visão cosmopolita da igualdade de gênero. No âmbito da Organização dos Estados Americanos, merecem referência: (1) a Conferência sobre Nacionalidade da Mulher, adotada em 1933 na VII Conferência Internacional Americana, realizada em Montevidéu; (2) a Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Políticos à Mulher, adotada em 1948 na IX Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá; e (3) a Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Civis à Mulher, também adotada na IX Conferência Internacional Americana. No âmbito das Nações Unidas, podemos mencionar a (1) Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada em 1979, e (2) Protocolo Facultativo a essa Convenção, adotado em 2001.
Como se constata pelo teor desses atos internacionais, a mulher, em pleno século XX, ainda lutava pelo direito de escolher a própria nacionalidade, por uma plena capacidade civil e pelo direito de participação política. No Brasil, por exemplo, somente após o advento da Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, a mulher casada deixou de ser relativamente incapaz.
A mulher, ao menos no Ocidente, parece ter conquistado a sua definitiva inserção no plano da igualdade formal, o que, se é suficiente para tranquilizar os menos exigentes, não logra êxito em afastar a infeliz constatação de que a realidade ainda é pródiga em exemplos de massivos e reiterados atos de discriminação contra a mulher. Afinal, o normativo, por maior que seja a sua plasticidade, jamais seria apto a eliminar uma longa história social de dependência e subordinação em relação ao homem.
O segundo grande desafio a ser diuturnamente enfrentado é o de transplantar a igualdade de gênero do plano meramente formal para o real, de modo que as mulheres, no curso de suas relações intersubjetivas, possam ter acesso a todos os benefícios e desempenhar as mesmas atividades asseguradas aos homens, desde, é óbvio, que os atributos físicos não assumam, legitimamente, um papel determinante no processo seletivo. A realização desses objetivos passa pelo reconhecimento formal da igualdade de gênero e alcança a adoção de medidas de inserção, conferindo-se um tratamento diferenciado à mulher de modo a compensar a posição de inferioridade que a evolução da humanidade sedimentou.
3 O Constitucionalismo Contemporâneo e a Proteção da Mulher
Costuma-se afirmar que a Constituição representa uma infindável série de escolhas, o que enseja questionamentos sobre se deve ser vista como um texto, uma intenção, uma ordem de deduções estruturais ou uma série de premissas políticas e morais. Com abstração da linha argumentativa que venha a ser seguida, não é possível subtrair da Constituição a imperatividade ou deixar de reconhecer a sua condição de "ordem suprema do Estado". Não há nenhuma norma jurídica de grau superior que lhe assegure a existência e imponha a observância, cabendo à própria ordem constitucional o fornecimento dos instrumentos que permitam a sua tutela e garantia.
Não é por outra razão que o constitucionalismo contemporâneo, mais especificamente após o segundo pós-guerra, tem se preocupado com a construção de uma ordem de valores pautada em referenciais de igualdade e dignidade. Em decorrência do histórico de adversidades, a igualdade de gênero é uma preocupação constante. A Grundgesetz alemã de 1949, por exemplo, dispõe, em seu art. 3º, que "todos os homens são iguais perante a lei. Homens e mulheres têm iguais direitos. Ninguém poderá ser prejudicado ou favorecido em razão do seu sexo (...)". A Constituição espanhola de 1978, do mesmo modo, visualiza a igualdade como um valor superior (art. 1º), reconhece o livre exercício profissional, assegurando que "em nenhum caso possa existir discriminação em razão do sexo" (art. 35) e ainda dispõe que compete aos Poderes Públicos promover as medidas necessárias, eliminando os obstáculos para que o exercício desses direitos seja viabilizado (art. 9º, 2). As Constituições italiana de 1947 (art. 3º) e brasileira de 1988 (art. 5º, I) também consagram um mandamento amplo de igualdade, vedando a distinção de sexo, mas a última delas ressalta que tal se daria nos termos prescritos na ordem constitucional. Em outras palavras, o tratamento diferenciado seria possível desde que harmônico com as normas constitucionais. Prescrições dessa natureza, é importante frisar, desempenham um papel de cunho mais diretivo, que propriamente restritivo. Em outras palavras, o tratamento diferenciado, ainda que não haja norma autorizadora expressa, sempre será possível, bastando seja demonstrada a presença de características distintas, intensas o suficiente para justificar um tratamento igualmente distinto.
O que se vislumbra na Constituição brasileira de 1988 é a existência de (1) um mandamento geral de igualdade (art. 5º, caput - "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]"); (2) um mandamento específico de igualdade de gênero (Art. 5º, I - "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações [...]"); e (3) uma cláusula de remissão, indicando a possibilidade de tratamento constitucional diferenciado (Art. 5º, II - "[...] nos termos desta Constituição"). Essa última cláusula mostra-se coerente com o sistema na medida em que a igualdade total entre homens e mulheres é expressamente excepcionada pelo próprio texto constitucional, ao contemplar, por exemplo, a necessidade de proteção do mercado de trabalho da mulher (v.g., art. 7º, XX) e a aposentadoria das mulheres com menor tempo de contribuição previdenciária (art. 40, § 1º, III, a e b). A análise desses dois comandos constitucionais permite concluir que a razão de ser do primeiro está na histórica exclusão da mulher do mercado de trabalho, o que exige a adoção de medidas protecionistas pelo Poder Público; o segundo, por sua vez, é diretamente influenciado por componentes (1) orgânicos, vale dizer, a menor resistência física da mulher, e (2) sociais, isto por ser comum o acúmulo de atividades, vale dizer, exercidas gratuitamente no lar e onerosamente no ambiente de trabalho.
Além das situações expressamente contempladas no texto constitucional, o tratamento diferenciado, em prol das mulheres, apresentará indiscutível juridicidade em sendo possível demonstrar que uma aparente discriminação formal busca, em verdade, alcançar a igualdade material.
4 As Noções de Igualdade e Discriminação
No plano normativo, apregoar a igualdade é estruturar uma sociedade onde todos estejam seguros e tenham sua condição humana reconhecida. Nessa linha, a existência de referenciais de análise que possuam a mesma essência é requisito indispensável a qualquer construção normativa relacionada à igualdade de direitos e deveres. Exige-se, assim, uma aferição comparativa, permitindo seja identificado em que medida as semelhanças se manifestam e quais os bônus ou ônus delas decorrentes. Para tanto, é necessário isolar as características relevantes, decisivas e umbilicalmente conectadas a uma dada consequência jurídica, o que pressupõe a correta identificação dos objetivos da norma, e proceder à comparação. O equívoco na individualização dessas características ou a incorreta associação entre característica e consequência jurídica, conferindo demasiada importância a um aspecto destituído de toda e qualquer relevância, certamente conduzirão a uma manifesta injustiça. Identificada a não uniformidade das características relevantes, será evidente a correção do tratamento diferenciado, conclusão que, à evidência, não afasta a necessidade de juízos valorativos extremamente delicados em relação à justa medida desse tratamento diferenciado, o que exigirá o emprego de um critério de proporcionalidade.
A simples constatação de que um indivíduo pertence à espécie humana, conquanto demonstre uma igualdade de essência, não afasta a possibilidade de, em círculos mais estreitos de análise, serem identificadas dissonâncias que justifiquem o tratamento diferenciado. Nesse particular, a neutralidade do Estado, elemento característico do laissez faire que direcionava o liberalismo clássico, somente se harmoniza com a denominada igualdade perante a lei, sendo vedada a outorga de posições jurídicas favoráveis a indivíduos ou grupos, ainda que notória a sua posição de inferioridade no contexto sociopolítico. O liberalismo clássico ainda apresentava um especial modo de ver e entender a "essência igualitária", legitimando, por exemplo, a discriminação racial e a discriminação de gênero, isto em razão de uma pseudo-superioridade do branco em relação ao negro e do homem em relação à mulher. A fórmula da igualdade geral, conquanto prevista pela ordem jurídica, era interpretada de modo a excluir certos grupos, como os negros e as mulheres. A Constituição brasileira de 1824 é um exemplo singular dessa igualdade seletiva, pois, num período em que a mulher estava sob o jugo do homem e o negro atado aos grilhões da senzala, o seu art. 179, XIII, com inegável plasticidade, dispunha que "a lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue".
A evolução da humanidade demonstrou o desacerto da tese de que certos grupos não seriam abrangidos pela fórmula da igualdade geral. Ocorre que a mera igualdade formal pouco a pouco se mostrou absolutamente inócua, já que incapaz de transpor o plano semântico e alcançar a realidade. Apesar de todos receberem o mesmo tratamento legal e o Estado não estar autorizado a introduzir discriminações arbitrárias, nem todos gozavam das mesmas oportunidades de inserção social. Assim, de modo correlato ao sentido clássico das discriminações, que assume contornos negativos ou de exclusão, assume indiscutível relevância o seu sentido positivo ou de inclusão, que se disseminou a partir da primeira metade do século XX. Nesse período, o pensamento jurídico-político apercebeu-se que a simples igualdade perante a lei, sem discriminações atentatórias à dignidade humana, não seria apta, por si só, a estabelecer uma igualdade real. Em outras palavras, afirmar que o miserável é igual ao rico ou que, numa sociedade historicamente segregacionista, o negro, doravante, passaria a ser igual ao branco, não tem o condão de gerar qualquer benefício real para as pessoas que se encontrassem em situação de inferioridade. Significa, tão-somente, que, perante os olhos da lei, todos são iguais. Esse tipo de igualdade, no entanto, em nada influi sobre as forças sociais que traçam os contornos da realidade. Na conhecida crítica de Anatole France, "a lei proíbe, tanto o rico como o pobre, de viver debaixo das pontes, de pedir nas ruas e de roubar".
A pura e simples inclusão, sob uma fórmula geral de igualdade, de grupos historicamente discriminados em decorrência de certos referenciais socioculturais, por si só, pode vir a refletir uma forma de discriminação. A partir dessa constatação, a doutrina norte-americana desenvolveu a "doutrina do impacto desproporcional" (disparate impact doctrine), construção teórica que busca demonstrar o impacto desproporcional que a norma geral pode ocasionar sobre certos grupos que não ostentam, de fato, uma posição de igualdade. A Suprema Corte encampou essa linha argumentativa no leading case Griggs vs. Duke Power Co. A ação foi ajuizada por um grupo de pessoas negras em face da Duke Power Co., empresa de energia elétrica que historicamente somente admitia os negros para o desempenho de funções subalternas, sendo arguida a ilicitude do "teste de inteligência" utilizado como critério de promoção. Argumentavam os autores da ação que esse requisito aparentemente igualitário, ao exigir a aprovação numa prova escrita, ao invés da tradicional apresentação de certificados escolares, terminaria por perpetuar o status quo, já que os negros, por terem estudado em escolas segregadas, não poderiam competir em igualdade de condições com os brancos. Em sua decisão, reconheceu a Corte que o "teste de inteligência", conquanto lícito, não se harmonizava com um referencial de igualdade material, pois, estatisticamente, não se mostrava apto a indicar a maior eficiência profissional para fins de promoção, podendo "'congelar' o status quo de práticas empregatícias discriminatórias do passado".
Desenvolveu-se, assim, o entendimento de que a igualdade, como parte integrante e indissociável do ideal de justiça, somente seria alcançada com a adoção de medidas efetivas, não meramente formais, que permitissem a sua efetiva implementação, não mera contemplação. Seria necessário transitar da igualdade formal para a igualdade material. O artificialismo da igualdade formal entra em refluxo, o dogma da neutralidade estatal é repensado e o pensamento jurídico-filosófico passa a ser direcionado à materialização da igualdade substancial, ontologicamente calcada na inserção social, e ao oferecimento de oportunidades para o livre desenvolvimento da personalidade. É com esse objetivo que surgem e se desenvolvem as denominadas ações afirmativas, fruto do pensamento político norte-americano e que buscam eliminar, ou ao menos diminuir, as desigualdades sociais que assolam certos grupos (v.g., as mulheres e os afrodescendentes).
5 A Ratio das Ações Afirmativas e a Lei Maria da Penha
Situações de igualdade formal e de igualdade material estão normalmente articuladas com posições diametralmente opostas aos valores que apregoam. Numa sociedade capitalista, de contornos essencialmente liberais, em que a livre iniciativa e o sistema de mérito são levados a posições extremas, não será incomum constatarmos a presença, no plano jurídico, de uma igualdade formal e, no plano fático, de uma flagrante desigualdade material. Iguais na lei, desiguais na realidade. Por outro lado, presente a preocupação com a igualdade material, será ela inevitavelmente acompanhada de uma desigualdade formal, já que a lei veiculará discriminações positivas com o objetivo de atenuar a real posição de inferioridade de certos grupos. Desiguais na lei, tendencialmente iguais na realidade. Fala-se em tendencialmente iguais na medida em que a lei, ainda que sistêmica e finalisticamente imbuída dos melhores propósitos, normalmente só terá êxito na atenuação das diferenças, não na sua total supressão.
Sobre o argumento de que as ações afirmativas terminariam por violar a cláusula de igual proteção (equal protection clause), observa Ronald Dworkin que essa cláusula não assegura que cada cidadão receba igual benefício de cada decisão política, mas, apenas, que será tratado como um igual, com igual interesse e respeito no processo político de deliberação. Essa linha argumentativa, apesar de ter objetivos opostos, apresenta certa semelhança com a construção de Edmund Burke (1729-1797), que defendia o direito de todo homem a uma porção justa de tudo o que a sociedade, a partir da combinação de sua força e habilidade, podia fazer em seu favor, acrescendo que "nessa participação todos os homens têm iguais direitos, mas não a coisas iguais". Em decorrência disso, ainda segundo Burke, aqueles que contribuíssem mais deveriam receber mais: era a tônica do Estado Liberal.
Ao adotar uma política pública em benefício de um grupo específico, o Estado não promove qualquer afronta aos direitos dos demais membros da coletividade, isto porque não seria necessário disponibilizar-lhes aquilo que já possuíam ou estava ao seu alcance possuir. Violação à igualdade haveria se o mesmo benefício fosse oferecido aos que estão na posição 0 e na posição +1. À simplicidade dessa constatação, no entanto, contrapõe-se a premissa de que a atuação estatal é vocacionada à satisfação do bem comum, e este nem sempre se confundirá com os interesses do grupo a que se atribuiu preeminência. A análise, assim, há de assumir proporções mais amplas, incursionando, igualmente, nos aspectos negativos da atuação estatal, mais especificamente nos efeitos que a priorização de uma dada política pública causará em relação aos interesses de outros grupos igualmente representativos. Em tempos de escassez, em que "escolhas trágicas" são uma constante, é necessário redobrado cuidado para que "ações afirmativas" não se transmudem em "ações negativas".
A Lei nº 11.340/06, como se constata pelo teor de sua ementa, "cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências". São indicados, assim, (1) os objetivos, (2) os destinatários da proteção e (3) os fundamentos de justificação e de validade da lei.
Principiando pelos objetivos, observa-se a preocupação em criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar, providência salutar na medida em que contribui para a preservação da família, fator indispensável ao saudável desenvolvimento humano e à formação de um Estado forte e coeso. A primeira dificuldade, no entanto, reside na opção de manter adstrita às mulheres a proteção dispensada pela Lei nº 11.340/06. Na medida em que a Constituição brasileira possui uma cláusula geral de igualdade de gênero e a norma constitucional programática de coibição à violência doméstica não é direcionada exclusivamente à mulher, questiona-se: a Lei nº 11.340/06 é constitucional?
A resposta a essa proposição inicial é especialmente relevante ao constatarmos que raras são as vozes que se insurgem contra a inconstitucionalidade da lei em sua totalidade, mas, tanto na doutrina como na jurisprudência, múltiplas são aquelas que, com fundamento na cláusula geral de igualdade de gênero, advogam a inconstitucionalidade de algumas normas que atribuem uma posição jurídica desfavorável ao homem que pratica, nas relações familiares e domésticas, um ilícito contra a mulher. Essa constatação, como se percebe, bem demonstra a fragilidade da tese. Afinal, se a igualdade de gênero veda seja dispensado tratamento desfavorável ao homem que pratique um ilícito contra a mulher, por identidade de razões, haveria de ser vedada a edificação de um diploma normativo integralmente voltado à proteção da mulher, como sói ser a Lei nº 11.340/06. Essa linha argumentativa, no entanto, não encontra maior ressonância nos críticos pela singela razão de que a mulher, historicamente, é discriminada pelas leis e pela sociedade, isto em razão da posição hegemônica mantida pelo homem. Como desdobramento dessas premissas, é possível afirmar que a inconstitucionalidade, acaso sustentada, há de se abeberar em fontes outras que não a cláusula geral de igualdade.
Uma norma de conduta, qualquer que seja ela, não é um corpo estranho à realidade. Pelo contrário, a norma, lembrando a metódica concretista de Friedrich Müller, é obtida a partir da interpretação do programa normativo (rectius: o texto) à luz do seu âmbito de aplicação (rectius: a realidade). A Lei nº 11.340/06 é endereçada à mulher justamente por ser ela, como vítima principal e quase que exclusiva da violência doméstica (lembre-se que os idosos, bem como as crianças e os adolescentes, já contam com proteção específica), a destinatária da norma resultante da interpretação do § 8º do art. 226 da Constituição de 1988.
Além de não destoar da ordem constitucional em seus aspectos mais gerais, únicos analisados até aqui, a Lei nº 11.340/06 busca concretizar os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, mais especificamente na (1) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará, de 1994; e na já mencionada (2) Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada em 1979 no âmbito da Organização das Nações Unidas. A última Convenção, como deflui de sua denominação, é essencialmente voltada à eliminação da discriminação contra a mulher, tanto no setor público, como no privado, ressaltando que "a adoção pelos Estados-Partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma estabelecida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como consequência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados" (art. 4º). A Convenção Interamericana, por sua vez, dispõe que os Estados-Partes devem empenhar-se em "tomar todas as medidas apropriadas, incluindo medidas de tipo legislativo, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes, ou para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência ou a tolerância da violência contra a mulher" (art. 7º, d). Essas convenções, como se percebe, demonstram uma efetiva preocupação com a alteração da realidade, não se contentando com a mera plasticidade formal de disposições normativas alegadamente igualitárias. A mulher deve ser igual ao homem e a violência praticada contra ela deve ser coibida, não apenas na lei, mas na realidade.
6 As Ações Afirmativas Adotadas pela Lei Maria da Penha
Principiando pela juridicidade das ações afirmativas, a primeira dificuldade reside em individualizar os grupos destinatários dessas discriminações positivas, o que exige reflexões em torno do contexto social e das razões históricas que contribuíram para a sua formação. Escolhas equivocadas, privilegiando aqueles que não deveriam ser privilegiados, podem redundar numa instabilidade social, deflagrando e institucionalizando desigualdades, não combatendo-as. Fatores econômicos e raciais são constantemente invocados, sendo reflexo da própria movimentação das forças sociais.
As ações afirmativas fazem que a igualdade inata, presente pela só condição de ser humano, ceda lugar a uma igualdade construída, de modo a assegurar a sua materialização na realidade e a concretização de certos padrões de justiça material. Esses padrões, por sua vez, refletem os valores comuns à ordem constitucional, que direcionam qualquer processo de normatizaçãoou de execução normativa. É o caso dos incisos I e III do art. 3º da Constituição de 1988, que dispõem serem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil "construir uma sociedade livre, justa e solidária", bem como "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais". Esses preceitos podem ser considerados o epicentro axiológico de qualquer ação afirmativa promovida em território brasileiro, direcionando a adoção de políticas públicas aptas à consecução dos objetivos neles referidos. Especificamente em relação à mulher, tem-se uma sistemática constitucional sensível à sua histórica situação de dependência e subordinação, justificando os tratamentos diferenciados que ela diretamente contemplou e permitindo que o legislador infraconstitucional venha a ampliá-los, sempre pautado pela base axiológica que dá sustentação às medidas de proteção e inserção da mulher.
Individualizados os destinatários e o objetivo fundamental, devem ser escolhidos os instrumentos a serem utilizados para alcançá-lo. As discriminações positivas refletem a essência das ações afirmativas, que apresentam natureza e objetivos extremamente variáveis. Podem assumir natureza legislativa ou administrativa e normalmente têm por objetivo assegurar (1) a igualdade de oportunidades, permitindo que certos grupos tenham plena possibilidade de desenvolver suas aptidões (v.g., reserva de vagas em universidades), (2) a concessão de prestações sociais mínimas e indispensáveis à preservação da dignidade humana (v.g., saúde e educação básica) ou (3) a concessão, ampla e irrestrita, de forma igualitária, de todas as prestações sociais necessárias ao indivíduo (v.g., direitos sociais nos antigos regimes socialistas). São exemplos corriqueiros a garantia de acesso a serviços e a bens considerados essenciais ao pleno desenvolvimento da personalidade ou à própria sobrevivência (v.g., ingresso no ensino superior, programas assistenciais de distribuição de recursos e alimentos etc.). A medida dessas prestações, em regra, oscilará entre prestações mínimas, indispensáveis à existência digna, e prestações voltadas ao nivelamento social, de modo a igualar os membros da coletividade. Essa última possibilidade, no entanto, apresenta um acentuado colorido teórico, pois destoa de qualquer sistema baseado no livre desenvolvimento e no mérito pessoal, isto sem olvidar a notória escassez de recursos.
No direito brasileiro, são múltiplas as iniciativas voltadas à construção da igualdade material, sendo normalmente utilizados, como critérios de individualização dos destinatários, (1) a cor, (2) o sexo, (3) a deficiência física e (4) a deficiência econômica. Podem ser mencionados, no plano federal: a) o Programa Diversidade na Universidade, que dispõe sobre a concessão de incentivos a organizações não-governamentais voltadas à preparação de jovens carentes para o vestibular (Lei nº 10.558/02); b) o Programa Universidade para Todos, que trata da concessão de bolsas de estudos no ensino superior (Lei nº 11.096/05); c) a reserva de vagas aos portadores de deficiência nos concursos públicos (CR/88, art. 37, VIII; e Lei nº 8.112/90, art. 5º, § 2º); e d) a reserva de vagas a candidatas do sexo feminino nas eleições (Lei nº 9.504/97, art. 10, § 3º).
Centrando nossa análise na Lei nº 11.340/06, é possível visualizar a utilização de quatro ordens de medidas, que são as de (1) inserção, (2) prevenção, (3) proteção e (4) coibição.
As medidas de inserção, que, além de não constituírem o principal objetivo da lei, assumem contornos essencialmente programáticos, estando condicionadas à adoção de políticas públicas específicas, buscam assegurar oportunidades e facilidades à mulher, com a correlata garantia de direitos essenciais a uma vida digna.
As medidas de prevenção variam desde a integração operacional dos órgãos governamentais que atuam nos casos de violência doméstica (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Polícia Judiciária etc.), passando pela adoção de medidas que permitam monitorar a intensidade e frequência com que os ilícitos são praticados (v.g., com a realização de estudos estatísticos), até alcançar as providências voltadas à formação de uma nova identidade sociocultural para o povo brasileiro, com o efetivo respeito pela mulher.
No âmbito das medidas de proteção, tem-se (1) aquelas especificamente direcionadas à esfera jurídica da mulher, vítima da violência doméstica, que deve receber todo o auxílio necessário à garantia de sua integridade física e mental, sendo-lhe assegurada, quando necessário, proteção policial, e, dentre outros, o direito de ser acompanhada para a retirada dos seus pertences do local da ocorrência; e (2) aquelas direcionadas à esfera jurídica do ofensor, isto com o objetivo de assegurar a proteção da ofendida, podendo assumir múltiplas formas, como o afastamento do lar e a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, medida drástica e que deve ser aplicada com muita cautela, isto em razão do seu potencial de desintegração da família.
Por último, temos as medidas de coibição, sendo enquadradas sob essa epígrafe aquelas que não ostentam cunho propriamente cautelar (v.g., afastamento do lar) e que estão direta ou indiretamente relacionadas à punição do infrator pelo ilícito que praticou. Essas medidas têm sido objeto de alguma polêmica em relação à sua constitucionalidade, em especial aquelas contempladas nos arts. 17, 33, parágrafo único, e 41 da Lei nº 11.340/06. Eis o seu inteiro teor:
"Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.
(...)
Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.
Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput.
(...)
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995."
À luz desses preceitos, constata-se uma evidente preocupação com a celeridade dos processos relativos à violência doméstica e a não incidência de algumas medidas despenalizadoras, em especial daquelas contempladas na Lei nº 9.099/95, como a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89). Aqueles que apregoam a inconstitucionalidade desses preceitos argumentam com a violação à cláusula geral de igualdade na medida em que a mesma infração penal, pelo só fato de ter sido praticada contra a mulher, sujeitaria o agente a consequências jurídicas mais severas. Trata-se, no entanto, de argumento superficial, que "ao mais leve sopro se espalha e desvanece", isto para lembrarmos as belas palavras de Raul Pompéia no monumental O Ateneu.
Inicialmente, observa-se que o estabelecimento de penalidades mais severas em razão da especial qualidade da vítima não é algo novo no direito brasileiro. Nesse sentido, nosso Código Penal, em sua versão original, de 1940, já previa, como circunstâncias agravantes, a prática de crime contra "ascendente, descendente, irmão ou cônjuge", bem como contra "criança, velho ou enfermo" (art. 44, II, f e i). No primeiro caso, argumentava Aníbal Bruno, a agravante decorria da "grave manifestação de insensibilidade moral dada pelo agente"; no segundo, da "covardia e impiedade do autor, que agiu sem atenção à situação pessoal da vítima". Roberto Lyra, por sua vez, realçava que a qualidade das vítimas refletia, em relação ao autor, "manifestações negativas da personalidade". A técnica, que já ornava o Código Criminal de 1890, foi preservada na nova Parte Geral, em vigor desde 1984 (art. 61, II, e e h). Embora atentos ao risco de nos alongarmos em questões de inegável obviedade, não devemos esquecer que a qualidade da vítima também tem sido considerada para a configuração de crime específico ou como causa especial de aumento de pena, como ocorre, de longa data, com os crimes praticados contra criança (art. 121, § 4º, parte final, e 129, § 7º, ambos do Código Penal) e, por força da Lei nº 11.340/06 (art. 44), também em decorrência da violência doméstica (art. 129, § 9º, do Código Penal). Ao que sabemos, a inconstitucionalidade desses preceitos nunca foi suscitada ou, se foi, não auferiu maior publicidade.
Do mesmo modo que a pena cominada pode ser exasperada, não vislumbramos qualquer óbice a que o legislador, lastreado em motivos harmônicos com a realidade e o sistema social, venha a restringir a aplicação de certos institutos processuais de modo a agravar a situação jurídica daqueles que pratiquem crimes contra pessoas que se encontrem em evidente situação de fragilidade no contexto social.
A violência doméstica praticada contra a mulher é fato que não pode ser desconsiderado e, muito menos, ignorado. Fruto de uma sociedade desenvolvida sobre alicerces patriarcais, a sua situação de inferioridade (fática), ainda presente em muitos rincões do nosso país, é justificativa não só plausível, como suficiente à defesa da legitimidade da técnica legislativa adotada. Ressalte-se, no entanto, que o tratamento diferenciado por razões de gênero somente deve ser admitido naqueles casos em que encontre ressonância em situações de discriminação pré-existentes, não como mola propulsora dessas discriminações. A Suprema Corte norte-americana, por exemplo, no caso Mississippi University for Women vs. Hogan , reconheceu a inconstitucionalidade da política de admissão de alunos praticada por Faculdade de Enfermagem, à época beneficiada por subsídios financeiros de origem pública, por só permitir o acesso de mulheres; isto porque a discriminação não buscava atender nenhum "importante objetivo governamental".
Considerando que as ações afirmativas têm por objetivo reduzir ou suprimir as desigualdades sociais e regionais, que se manifestam entre pessoas do mesmo âmbito social ou entre sociedades de distintas regiões do país, é intuitivo que cessarão ou serão paulatinamente reduzidas tão logo as desigualdades sejam eliminadas ou atenuadas. Ressalvadas as hipóteses em que alicerçadas em situações de inferioridade inerentes à própria espécie humana, invariáveis e imutáveis, como se verifica com a fragilidade de crianças e idosos, as ações afirmativas sempre serão temporárias; isto sob pena de se inaugurar um novo quadro de desigualdade, com atores diversos, tão logo cesse a desigualdade que, de início, se buscava combater. Daí a relevância dos estudos e dados estatísticos referidos na Lei nº 11.340/06, permitindo seja acompanhada a situação da mulher enquanto vítima de violência doméstica, o que pode justificar, ou não, a manutenção da sistemática inaugurada por esse diploma legal.
Epílogo
O delineamento da igualdade passa pela (1) definição da igualdade formal do modo mais amplo possível, (2) contenção da discriminação, punindo-se as iniciativas que atentem contra a igualdade formal e (3) construção da igualdade material. Especificamente em relação à situação da mulher enquanto vítima da violência doméstica, a reversão desse quadro somente será alcançada com a alteração dos padrões histórico-culturais há muito sedimentados na sociedade brasileira, o que exigirá a implementação de políticas públicas voltadas ao esclarecimento e à formação das novas gerações. O grande desafio é evitar que a constatação de German Proverb, ao afirmar que "a única igualdade real está no cemitério", assuma ares de sacralidade e tenha sua imutabilidade reconhecida, terminando por manter a mulher na triste condição de estereótipo da violência doméstica.
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