A Lei de Execução Penal e a Realidade Prisional

Celso de Magalhães Pinto
Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais; Pós-
graduado pela Fundação Dom Cabral Diretor do Conselho de
Criminologia de Minas Gerais; Diretor do Colégio Brasileiro
de Faculdades de Direito.
  

Sabe-se que a problemática penal, trazendo já profunda e justificada preocupação à crescente criminalidade, não poderá resolver-se modificando suas leis ou como advogam alguns, acrescendo suas penas e construindo jaulas.
Segurança não é apenas construir penitenciárias. Segurança é também construir escolas, oferecer trabalho, educação e saúde a todos que aspiram tais direitos e que lhes são inalienáveis.
Segurança é ainda, um tratamento penal de acordo com a lei, segundo seu objetivo maior - a ressocialização. A preocupação com o aumento da segurança apenas pela prisão, seria buscar soluções em seus efeitos e não em suas causas, obviamente incluindo soluções sociais estruturadas sob um clima de responsabilidade e organização (não por meio de esmolas em cartões regiamente distribuídos aos não necessitados a se locupletarem à custa da fome e da vida dos mais necessitados).
Elizabeth Sussekind ensina que: "a segurança Pública, tal como o Direito Penal, lida com a noção de justiça e injustiça, culpa e inocência, impunidade, ética, e costuma cativar o jovem e seu idealismo, a capacidade de buscar mudança, de desafiar o status quo". (Questões que acompanham o ensino do Direito - Revista do CCPC v. 6, p. 25)
A Lei de Execução Penal, nº 7.210, de 11 de julho de 1984, com as alterações da Lei nº 10.792, de 01/12/2003 - não precisaria ser modificada, originária que foi de acurados estudos dos maiores juristas brasileiros, dentro da moderna concepção dos objetivos da pena - a reeducação e a ressocialização do indivíduo - em consonância com a sua finalidade, a execução da pena como uma realização da Justiça.
Outras soluções como a privatização do sistema penitenciário também não procede, diante do seu desencontro com o ordenamento jurídico vigente. Uma pergunta seria pertinente em artigo da eminente penitenciarista Drª. Carmen Pinheiro de Carvalho, publicado na Revista do CCPC do Estado de Minas Gerais (v. 2, nº 2, p. 35/38) quando questiona: "o jus puniendi do Estado seria transferível?" Não se pode admitir entregar as penitenciárias a uma direção estranha à nova ideologia do tratamento penitenciário e à filosofia da execução penal, quando a sua legislação já alcançou estágio tão promissor.
Necessário o aperfeiçoamento de novas perspectivas quanto aos seus aspectos sociais, jurídicos e legais.
Autores como Luiz Fernando Camargo de Barros Vidal (RBCCrim entende que "o preso deixa de ser o sujeito em processo de ressocialização e torna-se objeto de uma empresa".
E ainda, a Ordem dos Advogados do Brasil apresentou ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária em seguida à Carta de Joinville (março de 1993) pela Associação dos Magistrados Brasileiros discordando do assunto, mas recomendando "que sejam estimuladas as soluções que visem ao incremento do trabalho do apenado".
Nada impede que este trabalho, segundo o art. 34 da LEP, neste momento visto como um fato jurídico e social, e não como um simples ato executivo penal, seja gerenciado por fundação ou empresa pública, atividades que se integram, sobretudo, ao instituto da remissão da pena pelo trabalho. (art. 126/130 da LEP).
Assim, o trabalho, ainda que terceirizado, viria atender às necessidades de uma legítima e legal aspiração da lei, sem a perda da tutela do Estado em seus aspectos relacionados à segurança, disciplina, educação, direção do estabelecimento, ao lado das atividades de cunho administrativo-penal e jurídico.
A execução da pena é a realização da Justiça, mas seu objetivo não é tornar o homem preso um "ser produtivo" em favor de algo ou de alguém, mas torná-lo "um-homem-que-trabalha" realizando-o, ressocializando-o, tornando-o capaz de desenvolver suas capacidades e conquistar o significado de sua identidade como pessoa ao aceitar novos valores rumo à sua reintegração familiar e social.
O princípio de legalidade consagrado no Direito Penal se resume "num regime de efetivas garantias ao interesse comunitário e aos direitos individuais" (DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para um sistema de penas. p. 391)
Para tal é imprescindível a vinculação da execução penal à Norma Jurídica, estando o "direito e o como punir" juridicamente subordinados segundo os limites da própria lei.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais faz a seguinte indagação:
É possível implantar uma cadeia sem armas, sem polícia e sem algemas, onde os próprios presos cuidam da sua segurança?
Este é o ideal que está sendo buscado com a eficaz participação das APACs - Associação de Proteção e Assistência aos Condenados, cujos resultados positivos já são plena e fertilmente demonstrados no país, notadamente nas cidades de Itaúna e Nova Lima, em nosso Estado de Minas Gerais, com o apoio e o reconhecimento do Egrégio Tribunal de Justiça.
Algumas opiniões sobre o sistema APAC, contidos no Projeto Novos Rumos na Execução Penal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, nos dão as seguintes impressões:
"O modelo apaqueano, dispondo de recursos modestos, lutando pela descentralização da execução penal e sua municipalização, consegue transformar o criminoso em cidadão. Como o Dr. Mário Ottoboni, estamos convencidos de que 'nenhum homem é irrecuperável', cumprindo sua pena em estabelecimento mantido pela APAC e voltado para os valores éticos, morais e religiosos. A participação da comunidade, através do trabalho voluntariado, é essencial ao êxito do empreendimento."
"A sinceridade, a solidariedade, o amor à justiça e uma conduta irrepreensível são armas usadas para 'mudar a cabeça do preso', reciclando seus valores e potencializando suas qualidades." - Desembargador Joaquim Alves de Andrade, Coordenador do Projeto Novos Rumos na Execução Penal.
"Aqui é muito mais difícil cumprir pena em função das regras. Em qualquer outro presídio, o condenado só tem a obrigação de comer, beber e dormir. Aqui é diferente e, por isso, temos a possibilidade de nos recuperarmos. A APAC veio mostrar que todo ser humano tem conserto, mas precisa ter uma chance. Somos uma família e ganhamos a oportunidade de encontrar a Deus." - Dirceu Seixas, recuperando da APAC de Nova Lima.
"Eu fui condenado a 106 anos em 58 processos e, durante o meu tempo no sistema prisional comum, eu fugi mais de 30 vezes. Mas, depois que eu fui para a APAC, não compensa fugir, porque aqui eu sou tratado com dignidade, como ser humano".
"Aqui, na APAC, eles me devolveram minha identidade e acho que do amor ninguém foge." - José de Jesus, recuperando da APAC-Itaúna.
"O limite do regime fechado são as grades. As grades nos impedem de sair. Já dentro do regime semi-aberto é diferente: são muros baixos, os portões estão constantemente se abrindo e se fechando... Então, a verdade é que a gente é preso no sistema semi-aberto pela própria consciência... Vê as ruas, tem contato com elas, mas não vai embora, porque sabemos que a gente precisa acabar de pagar o que deve à Justiça, para ser livre de verdade". - Amarildo Freire, recuperando da APAC-Itaúna.
Uma formação profissional, o conhecimento e aceitação de novos valores, objetivos e normas sociais e legais podem levar o indivíduo à busca de seu desenvolvimento e de sua vocação pessoal.
Segundo o próprio Tribunal, "O objetivo do Projeto Novos Rumos na Execução Penal, regulamentado pela Resolução nº 433/2004, publicado no Minas Gerais do dia 11 de maio de 2004, é incentivar a criação e ampliação das Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (APACs), de acordo com o modelo bem sucedido da comarca de Itaúna e com isto promover a humanização na execução das penas privativas de liberdade no Estado".
"O Projeto Novos Rumos na Execução Penal, ao propagar o método APAC, transforma em realidade a utopia de uma prisão fraterna, onde há participação da comunidade, espírito de ajuda recíproca entre os recuperandos, trabalho para todos, assistência jurídica eficiente, cuidados adequados com a saúde - prestados por voluntários, sem nenhum custo - além de aulas de valorização humana, que promovem a melhoria da auto-estima do condenado".
"Com a implantação do Projeto Novos Rumos na Execução Penal, juízes, promotores, prefeitos, vereadores, clubes de serviços, igrejas e outras entidades foram despertados para a necessidade de humanizar a execução penal, como medida de defesa social, conscientes de que a APAC atinge até 90% de recuperação do condenado, ao passo que o sistema penitenciário tradicional, gastando três vezes mais, fica nos modestos 15% de reintegração do egresso."
"Somente a valorização e dignificação do ser humano como um todo, com ênfase nos seus aspectos morais e espirituais pode afastá-lo e tirá-lo do mundo do crime. O Estado impessoal e abstrato não consegue atingir o âmago do homem. Só o voluntário leigo, médico ou sacerdote, por exclusivo espírito cristão pode atingir a alma do criminoso, para resgatá-lo da morte, como aqueles amigos que tiram a pedra do túmulo para que Cristo pudesse chamar Lázaro à vida".
De acordo com os anais do 1º Seminário Internacional de Estudos e Conhecimentos do método APAC o assunto é de tal importância que a "Prision Followship Internacional - órgão consultivo da ONU para assuntos penitenciários - patrocinou de 20 a 25 de maio de 2002 em Itaúna-MG, o 1º Seminário Internacional, que contou com a presença de 60 (sessenta) pessoas, representando 60 países dos cinco continentes. O Seminário foi realizado em Itaúna, por tratar-se de uma experiência, que pelos seus resultados positivos se tornou referência nacional e internacional no tocante à recuperação de presos".
Não se discute mais a natureza jurídica da execução penal definida no art. 1º da Lei como o de "efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado".
Daí a indiscutível autonomia do Direito Penitenciário - hoje denominado Execução Penal - na consecução de seus objetivos, fruto de atividades complexas nos planos jurisdicional e administrativo, não se dispensando ainda a cooperação essencial da comunidade com sua parcela de responsabilidade no processo de reintegração daquele que delinqüiu. (art. 4º da LEP)
Diante de tantos exemplos positivos já alcançados por intermédio dos métodos das APACs no país, alguns bem perto de nós, não seria de boa política a sua expansão?
São incontáveis os especialistas estudiosos realmente preocupados com a realidade prisional enquanto vêem surgindo os preocupados de última hora e os noticiários, que pretendem buscar soluções para esses dois grandes problemas, que são o crime e a pena.
Todos reconhecem que a prisão como é hoje aplicada, em jaulas e nos depósitos de homens, não oferecerá, jamais, as desejáveis e legais soluções. Não sendo possível suprimi-las, por que não modificá-las segundo normas mais modernas, sobretudo menos onerosas, práticas e humanas? Provas irrefutáveis vêm demonstrando que se adequam perfeitamente quanto aos seus objetivos.
Não se prescindirá nunca das penitenciárias bem administradas, onde muitos delinqüentes sob determinadas sentenças não podem delas prescindir, onde a educação formal e a informal, a disciplina, o trabalho, e, sobretudo a segurança são condições inalienáveis.
Quem sabe chegamos a ponto de sermos audaciosos ao parafrasear e cometer o crime de plágio do grande mestre RUI BARBOSA: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser humano".
Razão tem o Prof. Roberto Lyra quando ensinava que "a execução ilegal é pior que a inexecução". Até quando vamos inexecutar a nossa Lei de Execução Penal?
   

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