Processo: REsp 1159242
FONTE:STJ
Amar é faculdade, cuidar é dever. Com essa frase, da ministra Nancy
Andrighi, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) asseverou ser
possível exigir indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo pelos
pais. A decisão é inédita. Em 2005, a Quarta Turma do STJ, que também analisa o
tema, havia rejeitado a possibilidade de ocorrência de dano moral por abandono
afetivo.
No caso mais recente, a autora entrou com ação contra o pai, após ter
obtido reconhecimento judicial da paternidade, por ter sofrido abandono
material e afetivo durante a infância e adolescência. Na primeira instância, o
pedido foi julgado improcedente, tendo o juiz entendido que o distanciamento se
deveu ao comportamento agressivo da mãe em relação ao pai.
Ilícito não indenizável
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), porém, reformou a sentença.
Em apelação, afirmou que o pai era abastado e próspero e reconheceu o abandono
afetivo. A compensação pelos danos morais foi fixada em R$ 415 mil.
No STJ, o pai alegou violação a diversos dispositivos do Código Civil e divergência com outras decisões do tribunal. Ele afirmava não ter
abandonado a filha. Além disso, mesmo que tivesse feito isso, não haveria
ilícito indenizável. Para ele, a única punição possível pela falta com as
obrigações paternas seria a perda do poder familiar.
Dano familiar
Para a ministra, porém, não há por que excluir os danos decorrentes das
relações familiares dos ilícitos civis em geral. Muitos, calcados em axiomas
que se focam na existência de singularidades na relação familiar sentimentos e
emoções , negam a possibilidade de se indenizar ou compensar os danos decorrentes
do descumprimento das obrigações parentais a que estão sujeitos os genitores,
afirmou.
Contudo, não existem restrições legais à aplicação das regras relativas
à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar, no
direito de família, completou a ministra Nancy. Segundo ela, a interpretação
técnica e sistemática do Código Civil e daConstituição Federal apontam que o tema dos danos morais é
tratado de forma ampla e irrestrita, regulando inclusive os intrincados
meandros das relações familiares.
Liberdade e responsabilidade
A ministra apontou que, nas relações familiares, o dano moral pode
envolver questões extremamente subjetivas, como afetividade, mágoa, amor e
outros. Isso tornaria bastante difícil a identificação dos elementos que
tradicionalmente compõem o dano moral indenizável: dano, culpa do autor e nexo
causal.
Porém, ela entendeu que a par desses elementos intangíveis, existem
relações que trazem vínculos objetivos, para os quais há previsões legais e
constitucionais de obrigações mínimas. É o caso da paternidade.
Segundo a ministra, o vínculo biológico ou autoimposto, por adoção
decorre sempre de ato de vontade do agente, acarretando a quem contribuiu com o
nascimento ou adoção a responsabilidade por suas ações e escolhas. À liberdade
de exercício das ações humanas corresponde a responsabilidade do agente pelos
ônus decorrentes, entendeu a relatora.
Dever de cuidar
Sob esse aspecto, indiscutível o vínculo não apenas afetivo, mas também
legal que une pais e filhos, sendo monótono o entendimento doutrinário de que,
entre os deveres inerentes ao poder familiar, destacam-se o dever de convívio,
de cuidado, de criação e educação dos filhos, vetores que, por óbvio, envolvem
a necessária transmissão de atenção e o acompanhamento do desenvolvimento
sócio-psicológico da criança, explicou.
E é esse vínculo que deve ser buscado e mensurado, para garantir a
proteção do filho quando o sentimento for tão tênue a ponto de não sustentar,
por si só, a manutenção física e psíquica do filho, por seus pais biológicos ou
não, acrescentou a ministra Nancy.
Para a relatora, o cuidado é um valor jurídico apreciável e com
repercussão no âmbito da responsabilidade civil, porque constitui fator
essencial e não acessório no desenvolvimento da personalidade da criança. Nessa
linha de pensamento, é possível se afirmar que tanto pela concepção, quanto
pela adoção, os pais assumem obrigações jurídicas em relação à sua prole, que
vão além daquelas chamadas necessarium vitae, asseverou.
Amor
Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e
legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de
gerarem ou adotarem filhos, ponderou a ministra. O amor estaria alheio ao campo
legal, situando-se no metajurídico, filosófico, psicológico ou religioso.
O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos,
distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu
cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos,
mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações
entre o tratamento dado aos demais filhos quando existirem , entre outras
fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes,
justificou.
Alienação parental
A ministra ressalvou que o ato ilícito deve ser demonstrado, assim como
o dolo ou culpa do agente. Dessa forma, não bastaria o simples afastamento do
pai ou mãe, decorrente de separação, reconhecimento de orientação sexual ou constituição de nova família. Quem usa de um
direito seu não causa dano a ninguém, ponderou.
Conforme a relatora, algumas hipóteses trazem ainda impossibilidade
prática de prestação do cuidado por um dos genitores: limitações financeiras,
distâncias geográficas e mesmo alienação parental deveriam servir de
excludentes de ilicitude civil.
Ela destacou que cabe ao julgador, diante dos casos concretos, ponderar
também no campo do dano moral, como ocorre no material, a necessidade do
demandante e a possibilidade do réu na situação fática posta em juízo, mas sem
nunca deixar de prestar efetividade à norma constitucional de proteção dos
menores.
Apesar das inúmeras hipóteses que poderiam justificar a ausência de
pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, não pode o julgador
se olvidar que deve existir um núcleo mínimo de cuidados parentais com o menor
que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto
à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção
social, concluiu.
Filha de segunda classe
No caso analisado, a ministra ressaltou que a filha superou as
dificuldades sentimentais ocasionadas pelo tratamento como filha de segunda
classe, sem que fossem oferecidas as mesmas condições de desenvolvimento dadas
aos filhos posteriores, mesmo diante da evidente presunção de paternidade e até
depois de seu reconhecimento judicial.
Alcançou inserção profissional, constituiu família e filhos e conseguiu
crescer com razoável prumo. Porém, os sentimentos de mágoa e tristeza causados
pela negligência paterna perduraram.
Esse sentimento íntimo que a recorrida levará, ad perpetuam, é
perfeitamente apreensível e exsurge, inexoravelmente, das omissões do
recorrente no exercício de seu dever de cuidado em relação à recorrida e também
de suas ações, que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela,
caracterizando o dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à
compensação, concluiu a ministra.
A relatora considerou que tais aspectos fáticos foram devidamente
estabelecidos pelo TJSP, não sendo cabível ao STJ alterá-los em recurso
especial. Para o TJSP, o pai ainda teria consciência de sua omissão e das
consequências desse ato.
A Turma considerou apenas o valor fixado pelo TJSP elevado, mesmo diante
do grau das agressões ao dever de cuidado presentes no caso, e reduziu a
compensação para R$ 200 mil. Esse valor deve ser atualizado a partir de 26 de
novembro de 2008, data do julgamento pelo tribunal paulista. No julgamento do
STJ, ficou vencido o ministro Massami Uyeda, que divergiu da maioria.
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