Aborto Anencefálico e Imputação Objetiva: Exclusão da Tipicidade

Luiz Flávio Gomes
Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da
Universidade Complutense de Madri; Mestre em Direito Penal
pela USP; Secretário-Geral do Instituto Panamericano de
Política Criminal - IPAN; Consultor e Parecerista, Fundador e
Presidente do IELF PRO OMNIS: 1ª Rede de Ensino
Telepresencial da América Latina - www.proomnis.com.br.
   

       
Em 27 de abril de 2005 o STF admitiu a pertinência jurídica da ação de descumprimento de preceito fundamental para se discutir a questão do aborto anencefálico. Resta agora julgar o mérito da ação proposta. Seis dos onze ministros já deram evidências, em julgamentos ou entrevistas, de que votarão a favor do direito da mulher de optar por interromper a gravidez se for detectada a anencefalia.
Por ocasião da concessão da liminar (julho de 2004) o ministro Marco Aurélio de Mello, relator da ação, autorizou a antecipação do parto nesses casos em todo o país. Ele disse que não se trata de aborto porque não há chance de sobrevivência do feto fora do útero.
Naquele momento e também no dia do julgamento da admissibilidade da ADPF, quatro ministros concordaram com Marco Aurélio: Carlos Ayres Britto, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa. Em entrevista, o presidente do STF, Nelson Jobim, foi além, dizendo que é a favor da legalização do aborto, em qualquer caso. Com isso, ao que tudo indica, seis votos já são certos. É o quanto basta para a procedência da ação.
O Min. Marco Aurélio disse que o julgamento do mérito deve ocorrer neste ano. Neste semestre ele irá promover audiências públicas com os interessados na causa, inclusive representantes da comunidade científica. O Min. Joaquim Barbosa lembrou o caso de uma mulher do Rio de Janeiro que passou toda a gravidez submetida a um vaivém de decisões judiciais. Ao final, o parto ocorreu antes do julgamento de um habeas corpus no STF, e o bebê viveu sete minutos. Sublinhou o Ministro: "Ela foi submetida a todo tipo de chicana e arbitrariedade, inclusive por representantes do poder público." Ele criticou, ademais, o Código Penal, de 1940, que admite duas hipóteses de aborto: se a gravidez decorrer de estupro e se houver risco de vida à mãe. "Estamos diante de uma legislação vetusta, concebida em priscas eras."
Os quatro votos pelo arquivamento da ação foram de Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie Northfleet e Carlos Velloso. Eles disseram que o STF substituirá o Congresso na tarefa de legislar porque estará criando uma hipótese de aborto não prevista no Código Penal. Com a devida vênia, não é disso que se trata.
   
       
Exclusão da Punibilidade ou da Tipicidade?

Nosso Código Penal, no art. 128, prevê duas hipóteses de aborto permitido: o necessário, quando há risco de vida para a gestante (CP, art. 128, I), e o humanitário ou sentimental (quando a gravidez resulta de estupro - CP, art. 128, II). Não se pretende que o STF crie uma terceira modalidade de exclusão de punibilidade em relação ao aborto. Não é isso que se pede. Sim, que ele declare que o aborto anencefálico não se enquadra nos tipos penais desse crime (contemplados nos artigos 124 e ss. do CP).
Mas sob qual fundamento isso seria possível? A resposta só pode ser encontrada na teoria da imputação objetiva que, depois da II Guerra Mundial, foi reintroduzida no âmbito penal pelo funcionalismo (tanto moderado - Roxin - quanto radical - Jakobs). Quem cria risco permitido não responde pelo fato praticado. O risco permitido exclui a imputação objetiva. Logo, a tipicidade.
O aborto anencefálico não é um fato materialmente típico. Mas isso só pode ser compreendido quando se tem presente a distinção clara que hoje deve ser feita entre tipo penal, tipo formal e tipo material.
O tipo penal, no tempo do causalismo de Von Liszt e Beling (final do século XIX e começo do século XX), era puramente objetivo ou formal (era só causalidade). O fato típico exigia: (a) conduta; (b) resultado naturalístico (nos crimes materiais); (c) nexo de causalidade e (d) adequação típica (subsunção do fato à letra da lei). O tipo penal era puramente formal. O "matar alguém" significava "causar a morte de alguém". O eixo do tipo penal residia na mera causação. Provocar o aborto significava "causar o aborto". Bastava o nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado) para se concluir pela tipicidade da conduta. Nessa perspectiva puramente causalista e formalista, não há dúvida que o "causar qualquer tipo de aborto" (anencefálico ou não) é um fato típico.
Com o finalismo de Welzel (cujo apogeu deu-se entre 1945 e a década de sessenta do século passado) o tipo penal passou a ser composto de duas dimensões: objetiva e subjetiva. Esta última era integrada pelo dolo ou culpa (que foram deslocados da culpabilidade para a tipicidade). Também para essa corrente o aborto anencefálico desejado (doloso) seria um fato típico. A conclusão bem diferente se chega quando se considera o conceito de tipo penal a partir do funcionalismo, sobretudo de Roxin.
Foi com o funcionalismo de Roxin e de Jakobs (teleológico e sistêmico) que o tipo penal ganhou uma tríplice dimensão: (a) objetiva; (b) duplamente normativa e (c) subjetiva. O que o funcionalismo agregou como novidade na teoria do tipo penal foi a teoria da imputação objetiva, ou seja, a segunda dimensão (normativa ou valorativa). Não basta para a adequação típica o "causar a morte de alguém" (posição do causalismo) ou "causar dolosamente ou culposamente a morte de alguém" (posição do finalismo). O tipo penal não conta só com duas dimensões (a objetiva e subjetiva), sim, com três. Tipicidade penal, portanto, significa tipicidade formal + tipicidade material + tipicidade subjetiva (nos crimes dolosos).
Do tipo penal faz parte a imputação objetiva (dimensão normativa), que se expressa numa dupla exigência: (a) só é penalmente imputável a conduta que cria ou incrementa um risco proibido (juridicamente desaprovado); (b) só é imputável ao agente o resultado que é decorrência direta desse risco. Importa enfatizar neste momento a primeira exigência (criação de um risco proibido).
Sob qual fundamento é possível concluir se o risco é ou não proibido (juridicamente desaprovado)? A base dessa valoração decorre de uma ponderação (em cada caso concreto) entre o interesse de proteção de um bem jurídico (que tende a proibir todo tipo de conduta perigosa relevante) e o interesse geral de liberdade (que procura assegurar um âmbito de liberdade de ação, sem nenhuma ingerência estatal).
Depois de constatada a tipicidade formal (ou objetiva), fundamental agora é verificar também a tipicidade material, que é composta de requisitos puramente normativos (imputação objetiva e produção de um resultado jurídico relevante). Nos crimes dolosos ainda se requer a imputação subjetiva (dolo e eventualmente outros requisitos subjetivos específicos).
No caso do aborto, não basta (para a tipicidade penal) constatar a causação de um fato abortivo (a parte objetiva) ou mesmo a sua causação dolosa (objetivo mais subjetivo). Mais que isso: fundamental agora é perguntar se a conduta abortiva foi praticada num contexto de risco permitido ou proibido. O risco gerado é ou não desaprovado juridicamente?
No aborto anencefálico parece não haver dúvida que o risco criado (para o bem jurídico vida do feto) não é desaprovado juridicamente. Todas as normas e princípios constitucionais invocados na ação de descumprimento de preceito fundamental - artigos 1º, IV (dignidade da pessoa humana); 5º, II (princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade); e 6º, caput, e 196 (direito à saúde), todos da CF -, conduzem à conclusão de que não se trata de uma morte desarrazoada.
Não há dúvida que o art. 5º da CF assegura a inviolabilidade da vida, mas não existe direito absoluto. Feliz, portanto, a redação do art. 4º da Convenção Americana de Direitos Humanos, que diz: ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. O que se deve conter é o arbítrio, o abuso. Quando há interesse relevante em jogo, que torna razoável a lesão ao bem jurídico vida, não há que se falar em criação de risco proibido. Ao contrário, trata-se de risco permitido. A conduta que gera risco permitido, por isso mesmo, não é materialmente típica, por faltar-lhe o requisito da imputação objetiva.
Para a imposição de uma pena, como se vê, já não basta a simples causação objetiva de um resultado. Isso é necessário, mas não suficiente. A tipicidade penal, de outro lado, já não é tão-somente formal ou fático-legal. É também material. Causar não é a mesma coisa que imputar. Por isso que o art. 13 do nosso Código Penal diz: "O resultado, de que depende a existência do crime, só é imputável a quem lhe deu causa". O causar está no mundo fático (mundo da causalidade). A imputação pertence ao mundo axiológico (ou valorativo). O causar é objetivo. A imputação é normativa (depende de juízo de valor do juiz). O causar é formal. A imputação é material.
Do exposto se extrai a seguinte conclusão: nem tudo que foi mecanicamente causado pode ser imputado ao agente, como fato pertencente a ele. Aquilo que se causa no contexto de um risco permitido (autorizado, razoável) não é juridicamente desaprovado, logo, não é juridicamente imputável ao agente. No aborto anencefálico não existe uma morte arbitrária. Ao contrário, antecipa-se a morte do feto (cuja vida, aliás, está cientificamente inviabilizada), mas isso é feito para a tutela de outros interesses sumamente relevantes (saúde da mãe, sobretudo psicológica, dignidade etc.). Não se trata, então, de uma morte arbitrária. Por isso que o fato é atípico. Basta compreender que o "provocar o aborto" do art. 124 significa "provocar arbitrariamente o aborto" para se concluir pela atipicidade (material) da conduta. Esse, em suma, é o fundamento da atipicidade do aborto anencefálico.
   

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